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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Dança, fuga e luta, de Paris a Nova Iorque (ou entre fronteiras)

Da Áustria, EUA ou Suécia chegaram alguns dos filmes mais celebrados do QUEER LISBOA 27. Descobertas a reter numa altura em que o QUEER PORTO regressa à Invicta até dia 14.

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"LA BÊTE DANS LA JUNGLE", de Patric Chiha: Apesar de qualidades evidentes (direcção artística e guarda-roupa de encher o olho, a fotografia sumptuosa de Celine Bozon), o filme escolhido para a sessão de abertura do QUEER LISBOA deste ano não foi dos mais memoráveis.

Adaptação do romance "The Beast in the Jungle" (1903), de Henry James, a nova obra do realizador de "Si c’était de l’amour" (2019) transfere a acção do Reino Unido para França, acompanhando as noites partilhadas pela dupla de protagonistas num clube underground parisiense ao longo de 25 anos, entre 1979 e 2004.

Enigmático e envolvente na primeira metade, sobretudo pela carga sensorial já aplaudida noutros títulos do cineasta austríaco, é um olhar que se vai esgotando quando a longa espera das personagens principais por um acontecimento extraordinário se encaminha para uma reflexão existencial e melancólica que, não sendo desinteressante, se arrisca a ser antecipada pelo espectador.

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Também não ajuda que a direcção de actores seja desigual: se Anaïs Demoustier nunca deixa de ser uma presença forte e persuasiva, Tom Mercier oferece uma interpretação tão plana como apática, e talvez o filme saísse a ganhar caso o argumento se debruçasse mais sobre figuras secundárias, como a porteira a cargo da veterana Béatrice Dalle (sempre inquietante).

A cápsula temporal da narrativa é curiosa, até por ir apontando alguns eventos-chave (da crise da sida à queda do Muro de Berlim) em paralelo com a evolução das tendências de música de dança (do disco à synthpop, da house ao techno) e da moda (do fausto dos anos 80 ao despojamento da viragem do milénio) a partir da pista da discoteca. Só é pena que esse retrato do hedonismo e escapismo, captado com um fulgor estético assinalável, não tenha ressonância emocional à altura num drama tão esbatido - e que foi, incompreensivelmente, o único título apresentando em antestreia nesta edição do festival.

2,5/5

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"MUTT", de Vuk Lungulov-Klotz: Tão realista como humanista, este drama ambientado em Nova Iorque foi das melhores surpresas do QUEER LISBOA 27. Primeira longa-metragem de um realizador que já contava com três curtas, mergulha na vida atribulada de um rapaz trans de ascendência chilena durante 24 horas especialmente intensas, marcadas por três encontros decisivos: com o ex-namorado, com a meia-irmã e com o pai.

Reflexão sensível sobre a identidade, consegue abordar a transfobia ou a fase pós-transição sem simplificações, evitando reduzir as personagens a estereótipos. E nem o facto de o realizador estar claramente do lado do protagonista faz com que ostracize outras figuras que este por vezes confronta, destacando-se também pelas nuances no retrato de dois homens cisgénero que marcam esta jornada pessoal.

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O que se perde em militância ganha-se, felizmente, em ambiguidade, traduzida em algumas sequências de um intimismo precioso: as que se debruçam sobre a possibilidade de reatar uma relação amorosa são das mais conseguidas e tocantes, aliando a singularidade temática às interpretações justas de Lio Mehiel (premiada em Sundance) e Cole Doman.

Lungulov-Klotz, realizador e escritor trans criado entre o Chile, os EUA e a Sérvia, filma os corpos sem pruridos nem gestos gratuitos (caso de uma reveladora cena numa lavandaria), tem uma visão empática sem deixar de ser crua e afirma-se aqui como um nome a seguir com atenção. Mas esperemos que não fique restrito ao circuito dos festivais (depois de também ter sido distinguido em Berlim), porque este cinema queer merece mais salas...

3,5/5

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"OPPONENT", de Milad Alami: Vencedora do Prémio do Público do QUEER LISBOA e também distinguida com uma menção especial do júri (que premiou o igualmente meritório "Regra 34", de Julia Murat), a segunda longa-metragem do realizador sueco nascido no Irão e radicado na Dinamarca é ainda a candidata à nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional pela Suécia. E boa parte destas atenções (ou das várias nomeações no Festival de Berlim) terão sido motivadas pelo desempenho de Payman Maadi, o excelente actor de "Uma Separação" ou "A Lei de Teerão", que aqui mantém esse patamar enquanto confirma a versatilidade.

Com uma interpretação mais circunspecta e implosiva do que as que o ajudaram a fazer-se notar fora de portas, mais ancorada em silêncios (e nos olhares e na linguagem corporal) do que na profusão de diálogos, o iraniano eleva um sólido estudo de personagem vincado pelo realismo social, centrado no patriarca de uma família sua conterrânea refugiada numa pequena localidade sueca. O protagonista viu-se obrigado a sair do país natal devido a um segredo que este drama demora o seu tempo a revelar, colocando em jogo um contraste cultural atravessado pela angústia e o medo, o desejo e a repressão ou conceitos de masculinidade.

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Se nas linhas gerais do argumento este retrato não se afasta assim tanto de outros sobre homofobia internalizada, o contexto e a atenção que Alami dá aos detalhes são suficientemente interessantes para ultrapassar essas limitações (ou um final um tanto abrupto). Além, claro, de um actor que é certamente dos mais magnéticos vistos nesta edição do QUEER LISBOA, acompanhado por um elenco que também merece elogios - sobretudo Marall Nasiri, que atribui à mulher do protagonista uma subtileza e generosidade muito bem-vindas.

O realizador valoriza esse empenho, esmera-se em alguns episódios de antologia (um especialmente tocante com uma actuação ao piano, outro uma sequência onírica, além de flirts entre luta livre e homoerotismo) e justifica o entusiasmo que o sucessor do já aplaudido "The Charmer" (2017) tem despertado. Como outras apostas do festival, é das que parecem ter tudo para chegar a um público mais vasto - assim as distribuidoras o permitam ou comecem por reparar nele...

3,5/5

Os caçadores são fortes, mas também têm sentimentos

Balanço proveitoso da 24ª. edição do QUEER LISBOA, que terminou no passado sábado no Cinema São Jorge, em Lisboa. Além de filmes como "Make Up", "Neubau" ou "Vento Seco", houve mais (bons) motivos para passar pelo festival este ano.

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"EL CAZADOR", de Marco Berger: O novo filme de um realizador que se tornou presença regular no festival (desde a sua primeira obra, "Plan B", em 2010) dá conta de um olhar de cineasta cada vez mais vincado e seguro, até porque esta já é a oitava longa-metragem do argentino. Coerência temática e formal não lhe falta, com mais um retrato no masculino, desta vez a acompanhar o quotidiano de um adolescente homossexual e de um novo relacionamento amoroso bem menos idílico do que parece à partida.

Depois de ter abordado a sempre delicada questão da pedofilia em "Ausente", conseguindo fugir de um tom sórdido e escabroso, Berger volta a recusar o sensacionalismo nesta combinação de drama e thriller que alia a descoberta da sexualidade a uma análise a relações de poder e manipulação. Sabendo como envolver o espectador, tanto por uma narrativa enigmática como através de uma direcção de actores sem reparos (marca habitual no seu cinema e aqui assente num elenco particularmente jovem), o realizador deixa um relato complexo sobre a perda da inocência e dilemas éticos, desenhando um ciclo vicioso no qual a presa mais recente pode tornar-se no próximo predador.

É talvez um filme mais cerebral do que muitos dos anteriores, embora sem abdicar do humanismo que também os caracterizava - as personagens são figuras verosímeis e contraditórias e não meras peças de tabuleiro de uma tese. E se o voyerismo volta a ser outro dos seus traços, não invalida o respeito pelos protagonistas, alguns menores de idade, numa obra insinuante mas sem cenas de sexo. Em muitas sequências, Berger deixa que sejam os gestos e os olhares a dizer tudo, às vezes com a banda sonora periclitante de Pedro Irusta a sublinhar o suspense. E apesar de uma filmografia já longa, deixa aqui mais uma variação bem-vinda a um universo singular, ainda que talvez saísse reforçada com um final menos abrupto e anti-climático.  

3,5/5

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"LOS FUERTES", de Omar Zúñiga Hidalgo: Adaptação da curta "San Cristóbal", também do realizador chileno, que passou pelo Queer Lisboa em 2015, o filme de abertura da edição de 2020 mantém muitas das suas qualidades mas não tira grande partido da maior duração. Se inicialmente parece boa ideia reencontrar uma dupla com uma química tão forte como a protagonista, dois homens que se conhecem numa pequena localidade chilena e em relação à qual reagem de forma díspar, o resultado nunca chega a gerar uma carga dramática tão expressiva que justifique o salto para um formato longo. Antonio Altamirano e Samuel González são mais uma vez óptimos num drama naturalista, melancólico e terno, Hidalgo oferece alguns paralelos curiosos entre a relação do casal e a história do forte de Valdívia, cidade costeira onde decorre a acção, e a vertente realista nunca é colocada em causa. Só que "San Cristóbal" já dizia muito do que esta mais de hora e meia vai revelando, e de forma mais concisa, até porque o realizador não se mostra especialmente inspirado na gestão do ritmo. As personagens secundárias também não saíram a ganhar no processo, entregues a subenredos que o filme deixa por explorar enquanto repisa a jornada afectiva das principais, que se debatem com a homofobia familiar ou comunitária e aspirações de vida em direcções opostas - por vezes a lembrar as dinâmicas de "O Segredo de Brokeback Mountain" ou "Weekend", mas sem a intensidade do primeiro nem a fluidez do segundo. Uma das semi-desilusões deste ano, mesmo que não seja caso para deixar de acreditar na visão nem na sensibilidade de Hidalgo.

2,5/5

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"NO HARD FEELINGS", de Faraz Shariat: Há uma energia borbulhante (e muitas vezes contagiante) nesta estreia nas longas-metragens de um jovem realizador alemão (tem apenas 26 anos) filho de exilados iranianos. A ascendência de Shariat é, aliás, partilhada pela do protagonista de um drama com contornos parcialmente auto-biográficos, ambientado num bairro suburbano e a alternar entre dias de serviço comunitário num centro de refugiados e noites que conjugam raves e engates no Grindr. Esses contrastes não são os únicos de um filme que acompanha três personagens com as vidas em transição, seja através de confrontos identitários (com um olhar sobre a etnia e a sexualidade) e sobretudo de um abanão emocional mais forte: o risco de deportação de um dos vértices deste triângulo que conjuga ligações fraternais e amorosas.

Arrancando de forma ligeira mas ganhando gravidade à medida que vai avançando, o filme abre portas a uma discussão sobre a diferença e o privilégio sem a sobrepor à natureza das personagens, cuja alquimia é sempre o motor narrativo. Pelo caminho, nunca abdica da irreverência num retrato comunitário visto a partir de dentro, onde se junta história pessoal (os pais do protagonista são interpretados pelos do realizador e há uma sequência com imagens de arquivo VHS da sua infância) e ambição cinematográfica de contornos garridos.

A estética deve alguma coisa à linguagem da publicidade e dos videoclips (Shariat até já dirigiu vários) e sugere que as obras de Xavier Dolan ou Gregg Araki estarão entre as inspirações, lado a lado com uma energia pop que passa pela banda sonora (de artistas persas a Grimes ou Nena) ou pela devoção ao universo de Sailor Moon (responsável por alguns dos momentos mais bem humorados). O realizador também aponta as possibilidades do Instagram entre as referências, embora aqui o estilo não esmague a substância: vale a pena seguir este perfil e aceitar o convite de um filme orgulhosamente idealista, mas longe de utópico.

3,5/5