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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Os caçadores são fortes, mas também têm sentimentos

Balanço proveitoso da 24ª. edição do QUEER LISBOA, que terminou no passado sábado no Cinema São Jorge, em Lisboa. Além de filmes como "Make Up", "Neubau" ou "Vento Seco", houve mais (bons) motivos para passar pelo festival este ano.

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"EL CAZADOR", de Marco Berger: O novo filme de um realizador que se tornou presença regular no festival (desde a sua primeira obra, "Plan B", em 2010) dá conta de um olhar de cineasta cada vez mais vincado e seguro, até porque esta já é a oitava longa-metragem do argentino. Coerência temática e formal não lhe falta, com mais um retrato no masculino, desta vez a acompanhar o quotidiano de um adolescente homossexual e de um novo relacionamento amoroso bem menos idílico do que parece à partida.

Depois de ter abordado a sempre delicada questão da pedofilia em "Ausente", conseguindo fugir de um tom sórdido e escabroso, Berger volta a recusar o sensacionalismo nesta combinação de drama e thriller que alia a descoberta da sexualidade a uma análise a relações de poder e manipulação. Sabendo como envolver o espectador, tanto por uma narrativa enigmática como através de uma direcção de actores sem reparos (marca habitual no seu cinema e aqui assente num elenco particularmente jovem), o realizador deixa um relato complexo sobre a perda da inocência e dilemas éticos, desenhando um ciclo vicioso no qual a presa mais recente pode tornar-se no próximo predador.

É talvez um filme mais cerebral do que muitos dos anteriores, embora sem abdicar do humanismo que também os caracterizava - as personagens são figuras verosímeis e contraditórias e não meras peças de tabuleiro de uma tese. E se o voyerismo volta a ser outro dos seus traços, não invalida o respeito pelos protagonistas, alguns menores de idade, numa obra insinuante mas sem cenas de sexo. Em muitas sequências, Berger deixa que sejam os gestos e os olhares a dizer tudo, às vezes com a banda sonora periclitante de Pedro Irusta a sublinhar o suspense. E apesar de uma filmografia já longa, deixa aqui mais uma variação bem-vinda a um universo singular, ainda que talvez saísse reforçada com um final menos abrupto e anti-climático.  

3,5/5

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"LOS FUERTES", de Omar Zúñiga Hidalgo: Adaptação da curta "San Cristóbal", também do realizador chileno, que passou pelo Queer Lisboa em 2015, o filme de abertura da edição de 2020 mantém muitas das suas qualidades mas não tira grande partido da maior duração. Se inicialmente parece boa ideia reencontrar uma dupla com uma química tão forte como a protagonista, dois homens que se conhecem numa pequena localidade chilena e em relação à qual reagem de forma díspar, o resultado nunca chega a gerar uma carga dramática tão expressiva que justifique o salto para um formato longo. Antonio Altamirano e Samuel González são mais uma vez óptimos num drama naturalista, melancólico e terno, Hidalgo oferece alguns paralelos curiosos entre a relação do casal e a história do forte de Valdívia, cidade costeira onde decorre a acção, e a vertente realista nunca é colocada em causa. Só que "San Cristóbal" já dizia muito do que esta mais de hora e meia vai revelando, e de forma mais concisa, até porque o realizador não se mostra especialmente inspirado na gestão do ritmo. As personagens secundárias também não saíram a ganhar no processo, entregues a subenredos que o filme deixa por explorar enquanto repisa a jornada afectiva das principais, que se debatem com a homofobia familiar ou comunitária e aspirações de vida em direcções opostas - por vezes a lembrar as dinâmicas de "O Segredo de Brokeback Mountain" ou "Weekend", mas sem a intensidade do primeiro nem a fluidez do segundo. Uma das semi-desilusões deste ano, mesmo que não seja caso para deixar de acreditar na visão nem na sensibilidade de Hidalgo.

2,5/5

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"NO HARD FEELINGS", de Faraz Shariat: Há uma energia borbulhante (e muitas vezes contagiante) nesta estreia nas longas-metragens de um jovem realizador alemão (tem apenas 26 anos) filho de exilados iranianos. A ascendência de Shariat é, aliás, partilhada pela do protagonista de um drama com contornos parcialmente auto-biográficos, ambientado num bairro suburbano e a alternar entre dias de serviço comunitário num centro de refugiados e noites que conjugam raves e engates no Grindr. Esses contrastes não são os únicos de um filme que acompanha três personagens com as vidas em transição, seja através de confrontos identitários (com um olhar sobre a etnia e a sexualidade) e sobretudo de um abanão emocional mais forte: o risco de deportação de um dos vértices deste triângulo que conjuga ligações fraternais e amorosas.

Arrancando de forma ligeira mas ganhando gravidade à medida que vai avançando, o filme abre portas a uma discussão sobre a diferença e o privilégio sem a sobrepor à natureza das personagens, cuja alquimia é sempre o motor narrativo. Pelo caminho, nunca abdica da irreverência num retrato comunitário visto a partir de dentro, onde se junta história pessoal (os pais do protagonista são interpretados pelos do realizador e há uma sequência com imagens de arquivo VHS da sua infância) e ambição cinematográfica de contornos garridos.

A estética deve alguma coisa à linguagem da publicidade e dos videoclips (Shariat até já dirigiu vários) e sugere que as obras de Xavier Dolan ou Gregg Araki estarão entre as inspirações, lado a lado com uma energia pop que passa pela banda sonora (de artistas persas a Grimes ou Nena) ou pela devoção ao universo de Sailor Moon (responsável por alguns dos momentos mais bem humorados). O realizador também aponta as possibilidades do Instagram entre as referências, embora aqui o estilo não esmague a substância: vale a pena seguir este perfil e aceitar o convite de um filme orgulhosamente idealista, mas longe de utópico.

3,5/5

Com o desejo (e o medo) à espreita

O confronto com a sexualidade inspira três dos filmes da secção competitiva do QUEER LISBOA, a decorrer até 28 de Setembro no Cinema São Jorge: todos primeiras longas-metragens com personalidade, todos estudos de personagem que desafiam coordenadas pré-estabelecidas.

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"MAKE UP", de Claire Oakley: Quem é a mulher ruiva que Molly persegue mas que mais ninguém vê num parque de férias de Cornwall, na costa inglesa? O mistério conduz esta viagem entre o drama coming of age e o thriller psicológico assente em alguns códigos do terror, amálgama gerida com pulso forte por Oakley. A realizadora britânica consegue desenhar uma atmosfera tão impressionante como inquietante, especialmente notável numa primeira longa-metragem, e aos poucos vai-se desviando de territórios realistas para apostar num tom impressionista e com uma carga simbólica que se revela consequente quando esta jornada iniciática termina o ciclo. Além do forte sentido de espaço, vincado pelo retrato de uma comunidade isolada e pela forma como deixa que o vento ou o mar estejam em sintonia com o turbilhão emocional da protagonista, "Make Up" sobressai pela interpretação de Molly Windsor (talento já revelado em "The Runaways" ou "Três Meninas"), sempre credível na pele de uma adolescente assombrada por um despertar sexual que segue um rumo inesperado. Na retina fica ainda a bela fotografia etérea de Nick Cooke, com predilecção por escarlates e alaranjados, a consolidar um brilhantismo visual que compensa algumas hesitações do argumento e a pouca atenção dada às personagens secundárias. Mas nem tudo é maquilhagem, parece estar aqui uma cineasta de corpo inteiro.

3/5

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"NEUBAU", de Johannes Maria Schmit: Embora tenha algumas sequências surpreendentes e comoventes enquanto oferece uma perspectiva invulgar sobre o envelhecimento, a família ou questões de género, este drama alemão também dá conta das fragilidades muitas vezes associadas a primeiras obras. Ambientado em Bradenburgo, acompanha o dia-a-dia de um rapaz que tem de se dedicar a uma avó cujo estado mental se deteriora à medida que vai lidando com as suas próprias mudanças, reaprendendo a relacionar-se com o seu corpo e adiando sonhos de viver em Berlim. Ironicamente, o filme também parece desenrolar-se num impasse, com o realizador indeciso quanto ao ritmo a adoptar e às narrativas a privilegiar. Um novo relacionamento amoroso, apesar de muito antecipado, acaba por ser desenvolvido de forma esquemática. Melhores são as cenas com as avós do protagonista, tão palpáveis na angústia como na ternura, ainda que pareçam pertencer a uma curta ou média metragem e não tanto a uma longa na qual o todo fica aquém de algumas partes. Partes como essas ou como uma sequência de bedroom dancing libertadora e, de certa forma, transportadora, ao som de "Mit Dir", pérola synth pop esquecida do conterrâneo Robert Görl (ex-elemento dos D.A.F.). Também muito bem recuperada é "Relax It's Only a Ghost", bonita canção indietronica do duo alemão Phantom Ghost e óptima escolha para os créditos finais de um filme com o qual é difícil não simpatizar, mas do qual apetecia gostar mais.

2,5/5

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"VENTO SECO", de Daniel Nolasco: Provocação não falta nesta primeira longa de ficção de um realizador que se fez notar pelas curtas e documentários. Mas se este drama com uma carga voyeurista evidente promete alimentar conversas sobre as fronteiras entre cinema (homo)erótico e pornográfico - tendo em conta duas ou três sequências de sexo explícito, algumas de relevância narrativa questionável -, o que mais marca aqui é o retrato implacável da solidão e da homofobia internalizada, através do quotidiano rotineiro de um trabalhador de uma fábrica de fertilizantes de Goiás, no interior do Brasil. Quando a (escassa) vida pessoal parece ser tão mecanizada como a laboral, sobra um onirismo fetichista (muitas vezes devedor do imaginário hard de Tom of Finland) que vai diluindo as fronteiras entre a realidade e a fantasia. Ainda assim, há espaço para a mudança quando um novo colega de trabalho do protagonista entra em cena e abala uma relação frágil mas dada como adquirida.

Nolasco é muito bom a cruzar um humor camp com os fantasmas interiores de um homem de meia-idade, e atinge a excelência formal em vários momentos pela montagem revigorante e direcção de fotografia à altura de Larry Machado. O olhar sobre o Brasil rural, sobretudo nas cenas nocturnas (onde não faltam neons e tons púrpura), sugere estar aqui um parente próximo de "Boi Neon", de Gabriel Mascaro, ou da série "Boca a Boca", exemplos recentes e conterrâneos de uma sensibilidade que cruza marcas locais com heranças externas enquanto explora questões de identidade e sexualidade (com uma energia visual que remete para a obra de Nicolas Winding Refn, ente outras, e uma banda sonora a conjugar habilmente música sertaneja, canções de Thiago Pethit ou a electrónica envolvente dos Chromatics).

Só que talvez não fosse preciso pedir quase duas horas ao espectador para um relato que ameaça terminar várias vezes antes de efectivamente chegar ao fim - e o final escolhido, não sendo desapontante, também não é tão forte como outros que foram surgindo entre as possibilidades. Em todo o caso, está aqui um exemplo bem recomendável (e sem medo de transgredir) tanto do cinema brasileiro como cinema queer recente.

3,5/5