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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

A sobrinha perdida (em Istambul?)

Pela estrada fora, entre a Geórgia e a Turquia, uma mulher procura a sobrinha trans num filme que cruza territórios geográficos e emocionais. "CROSSING - A TRAVESSIA", drama de itinerário incerto mas sempre envolvente, é mais um triunfo no caminho auspicioso de Levan Akin.

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Há cinco anos, Levan Akin sobressaiu como uma das vozes mais sonantes de um país do qual ouvimos muito poucas, pelo menos no que diz respeito ao cinema: a Geórgia. Embora sueco, o realizador nascido em Estocolmo há 44 anos tem ascendência da nação em tempos ocupada pela Rússia e a sua realidade não lhe é estranha. Ficou, aliás, documentada na sua terceira longa-metragem, "And Then We Danced" (2019), a tal que cativou olhares fora de portas (até foi o indicado sueco ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro) e teve passagem por Portugal no Queer Lisboa.

Desde então, Akin trabalhou no pequeno ecrã (incluindo na aconselhável série "Interview with the Vampire, exibida por cá no AMC) e regressou este ano ao cinema com um drama que também volta a partir da Geórgia mas tem em vista a Turquia. "CROSSING - A TRAVESSIA", vencedor de um Teddy Award na mais recente edição do Festival de Berlim e que já tinha passado por salas nacionais no IndieLisboa, em Maio, volta a colocar a identidade no centro de um relato realista e compassivo, ancorado em personagens nas quais não é difícil acreditar logo nas primeiras cenas.

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Numa história marcada por vários cruzamentos (de classe, género, orientação sexual ou geografia), um dos iniciais é o que aproxima uma professora reformada de um adolescente que parte com ela rumo a Istambul na tentativa de encontrar sua sobrinha, uma jovem trans rejeitada pela família.

De temperamentos contrastantes - a protagonista é altiva e desconfiada, o rapaz ingénuo e desbocado -, esta dupla improvável traça uma jornada que, não sendo especialmente surpreendente (a lógica que a molda tem ecos de um buddy movie), volta a dar provas da sensibilidade da escrita de Akin (foi o único argumentista do filme), hábil a dosear gravidade e humor, e das suas capacidades como director de actores.

A veterana (ainda que infelizmente pouco vista) Mzia Arabuli e o estreante Lucas Kankava são óptimos a moldar uma cumplicidade crescente, mas nunca dada como garantida, e Deniz Dumanli abre outros horizontes temáticos e narrativos com convicção na pele de uma mulher trans recém-formada em Direito que apoia um centro comunitário LGBTQIA+ turco.

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À medida que a relativa familiaridade do trajecto do duo on the road se cruza com um quotidiano pouco turístico de Istambul, "CROSSING - A TRAVESSIA" vai conferindo singularidade ao seu retrato dos marginalizados, apontando a câmara aos que lidam com a  pobreza, a solidão e a intolerância (homo e transfobia) sem escorregar para a condescendência e o miserabilismo.

Apesar de Akin apontar influências do neorrealismo italiano, há esperança nesta incursão turca, mesmo que não necessariamente um final feliz. Sobretudo quando há espaço para a libertação dos corpos nas noites longas de Istambul, que tanto oferecem melancolia como hipóteses de hedonismo ao virar da esquina. A dança não é tão dominante como no filme anterior, mas ainda é reveladora de facetas menos óbvias de algumas personagens. E o bailado emocional nem precisa de fazer uma pirueta no fim, como "And Then We Danced", para garantir uma das estreias mais bonitas e comoventes da temporada.

3,5/5

Amor de mãe (num Brasil onde não brilha o sol)

É uma das boas surpresas do cinema brasileiro actual e vem confirmar Carolina Markowicz como uma realizadora a seguir: estudo da relação entre uma mãe e um filho ameaçada pelo preconceito, "PEDÁGIO" encontra um lugar particular nas narrativas queer e da entrada na idade adulta.

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"Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma hipótese hipócrita aqui: prefiro que ele morra", proferiu Jair Bolsonaro numa das várias declarações feitas antes, durante e depois de ocupar o cargo de presidente brasileiro que apelaram à legitimação da homofobia - e logo num país em que o homicídio de pessoas trans bate recordes mundiais.

Carolina Markowicz não tem escondido que a coprodução luso-brasileira "PEDÁGIO" é, em parte, uma reacção às mensagens de ódio que se têm intensificado contra a comunidade LGBTQIA+ dentro e fora de portas, à medida que a extrema-direita alarga a sua influência de forma assustadora. Mas felizmente, a sua segunda longa-metragem (sucessora da elogiada "Carvão", de 2022, que não teve distribuição comercial em Portugal) escapa quase sempre às armadilhas do panfleto filmado.

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O cinema sobrepõe-se à militância e este drama, que chegou a ser considerado para candidato a Óscar de Filme Internacional ("Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho, acabou por ser representante brasileiro) é, sobretudo, um estudo de personagens centrado na relação conturbada entre uma mãe (que trabalha numa portagem, ou "pedágio", como se diz no Brasil) e um filho, no qual primeira não só não aceita a homossexualidade do segundo como o inscreve numa terapia de conversão. 

Ambientado em Cubatão, pequena localidade nos arredores de São Paulo cujo perfil industrial, poluído e turvo se aproxima de um cenário de ficção científica pós-apocalíptica (a fotografia suja e granulada de Luís Armando Arteaga ajuda), este mergulho invulgar num Brasil nada soalheiro e veraneante tem o mérito de não demonizar a progenitora e de não fazer do adolescente ostracizado uma mera vítima das circunstâncias, fugindo também a tentações de miserabilismo social. E oferece várias cenas, tão verosímeis como tocantes, que dão conta do amor mútuo que marca a convivência neste núcleo familiar, apesar do fosso que dá rastilho ao filme.

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Hábil directora de actores, Markowicz dificilmente poderia ter escolhido melhor do que Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga para encarnarem os protagonistas, ela a viver uma mãe disposta a tudo pelo filho, mas incapaz de combater imposições sociais e religiosas, ele a conjugar doçura, insolência e força, num percurso de emancipação sem deixar a mãe para trás. O sempre confiável Thomas Aquino ("Deserto Particular", "Boca a Boca", "Bacurau"), num papel secundário mas decisivo, e Aline Marta Maia, a garantir os momentos mais espirituosos, são outros alicerces de um elenco sólido.

O argumento, no entanto, nem sempre apresenta a mesma solidez quando sai da esfera doméstica para a das reuniões da terapia de conversão. Nessas cenas, o realismo dá lugar à sátira e "PEDÁGIO" sublinha o que já era óbvio, numa denúncia simplista do preconceito, ignorância e hipocrisia. A personagem do pastor, interpretada pelo português Isac Graça, ressente-se disso, ao nunca conseguir escapar à caricatura - o filme sairia, provavelmente, a ganhar caso lhe permitisse a complexidade que confere às outras personagens.

Por outro lado, o desenlace, depois de uma passagem tão inesperada como escorreita pelo thriller, é um achado ao não oferecer soluções fáceis para a dinâmica de rejeição e validação na qual assenta a cumplicidade dos protagonistas. A última sequência entrega tudo aos silêncios e olhares de Jinkings e Alvarenga e eles dizem tudo o que ficou por dizer, num dos finais "em aberto" mais perspicazes, (apropriadamente) ambíguos e arrebatadores dos últimos tempos.

3,5/5