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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Dramas familiares alla italiana

Duas das melhores apostas da mais recente edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tiveram direito a estreia no circuito comercial. Uma já passou pelas salas, outra está entre as novidades da semana a ter em conta.

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"L'IMMENSITÀ - POR AMOR", de Emanuele Crialese: Valeu a pena esperar mais de dez anos por um novo filme do realizador de "Respiro" (2002), que não dava notícias desde "Terraferma" (2011) - tirando uma breve passagem pela televisão em 2018.

Viagem ao quotidiano disfuncional de uma família da classe média na Roma de finais dos anos 1970, é um regresso desde logo elevado por uma luminosa Penélope Cruz, óptima na pele de uma dona de casa e mãe de três filhos que tem de lidar com o pior da misoginia e das imposições sociais, culturais e religiosas que não a deixam sair de um casamento arruinado.

Mas o olhar de Crialese detém-se mais na filha mais velha, que questiona a sua identidade de género num ambiente em que temas trans estavam longe de ser acolhidos e muito menos compreendidos. A mãe, no entanto, faz o que pode, e dos momentos de cumplicidade que balizam essa relação nasce o melhor de um (melo)drama dividido entre a crise conjugal e uma narrativa coming of age de contornos queer.

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A jovem estreante Luana Giuliani é tão intensa e credível como Cruz enquanto figura com desejos de evasão numa realidade (hetero)normativa e claustrofóbica, mas felizmente Crialese não faz do dia a dia de ambas uma via sacra: o escapismo chega através de sequências musicais oníricas (talvez até demasiadas) e de uma possibilidade amorosa para a adolescente, além da dinâmica habitualmente festiva entre mãe e filhos (a direcção de actores exímia estende-se às crianças do elenco).

O realizador, que assumiu ser um homem trans na altura da estreia do filme em Itália, no ano passado, revelou que esta é uma história parcialmente autobiográfica e talvez por isso seja tão verosímil e envolvente. Crialese tem sensibilidade quanto às muitas inquietações que vai percorrendo e só é pena que a personagem do pai desta família seja a menos tridimensional. Não por culpa do actor, Vincenzo Amato, mas por este patriarca não ter direito a grandes nuances entre a tirania e machismo que o argumento vai denunciando - naquela que é, de longe, a sua vertente menos subtil.

Passando ao lado dessa limitação e de um desenlace que fica aquém do rasgo de muitas sequências anteriores (como as de uma tarde recreativa que acaba mal ou de um jantar de gala asfixiante), "L'IMMENSITÀ - POR AMOR" volta a dar bons motivos para acompanhar Crialese, sobretudo quando "Terraferma" não tinha oferecido assim tantos. E ganha já lugar entre os filmes mais bonitos e comoventes de 2023, depois de ter inaugurado a mais recente edição da Festa do Cinema Italiano e de ter sido nomeado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza...

3,5/5

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"VELAS ESCARLATES", de Pietro Marcello: O autor de "Martin Eden" (2019) confirma-se como um dos nomes mais idiossincráticos do cinema italiano dos últimos anos, mesmo que o seu novo filme esteja longe de ser um caso de consenso (ou talvez também por isso).

Adaptação livre do romance homónimo do russo Aleksandr Grin, editado em 1923, este drama de época é um cruzamento tão inusitado como imersivo de um realismo árido, a vincar sobretudo as sequências iniciais, com um tom de fábula e acessos musicais, às vezes até absurdos, à medida que este retrato familiar vai avançando décadas.

Ambientado numa pequena localidade do norte de França no pós-I Guerra Mundial, a primeira obra de Marcello falada em francês arranca como estudo de personagem de um combatente taciturno e solitário (Raphaël Thiery, perfeito como gigante gentil) cujo regresso a casa o torna estranho numa terra estranha, e mostra ao quem vem quando vai virando o foco para a sua filha, da nascença aos primeiros anos da idade adulta (papel bem entregue a três jovens actrizes: Asia Bréchat, Sienna Gillibert e Juliette Joan).

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Entre a crueza e o lirismo, o romanesco e heranças do folclore local, o realizador junta ainda imagens documentais, como já acontecia no filme pelo qual mais se notabilizou, cruzadas com a fotografia granulada, em 16mm, de Marco Graziaplena, a contribuir para a carga sensorial assinalável.

Se esteticamente o italiano esculpe alguns planos de antologia (dos rostos dos actores a cenas à beira-rio banhadas pelo sol), tão deslumbrantes como as criações do antigo soldado tornado artesão de brinquedos, o entusiasmo despertado pelo argumento é mais variável: a história do pai, e da dureza da vida no campo na qual é visto como pária pela comunidade, é mais conseguida do que a da filha, vincada pelo travo feminista e por um romance que surge de forma arbitrária (com um aviador a cargo Louis Garrel, tão estouvado como sempre, que quase cai aqui de pára-quedas).

Parece faltar um terceiro acto que dê outro peso dramático a uma narrativa deliberadamente fragmentada, à qual não falta liberdade e personalidade, é certo, mas que não sai muito favorecida por um final tão repentino. Por outro lado, quem procurar um filme imprevisível e desafiante, de uma voz sem grandes paralelos recentes, tem aqui a escolha em cartaz a não perder.

3,5/5

Cinema nada protocolar (cortesia da nova geração brasileira)

Depois do documentário "Deus tem AIDS", premiado no Queer Porto no ano passado, os realizadores brasileiros Fábio Leal e Gustavo Vinagre voltaram a estar em destaque na mais recente edição do QUEER LISBOA. Desta vez em separado, mas ambos com longas-metragens saudavelmente livres e transgressoras, cruzando humor e ansiedade pandémica.

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"SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS", de Fábio Leal: Variação muito singular sobre o "filme da pandemia", a primeira longa-metragem do realizador (e actor, argumentista e produtor) de curtas como "O Porteiro do Dia (2016) ou "Reforma" (2018) foi criada durante o confinamento e explora as inquietações de um homem gay solitário, carente e hipocondríaco, interpretado pelo próprio.

O protagonista decide ter sexo após dez meses de privação, mas está decidido a tomar todas as precauções contra a COVID-19, o que o atira para um processo tão angustiante como delirante nesta crónica de medos e afectos sempre pessoal mas transmissível. Filme literalmente muito lá de casa, é um olhar lúcido e lúdico sobre as contradições de uma fase de incerteza, aqui alimentada pelo refúgio no isolamento e numa dieta de redes sociais.

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Capaz de conjugar humor autoconsciente (e em certa medida auto-crítico) e uma vulnerabilidade assinalável, Fábio Leal compensa com ideias visuais e de escrita os poucos recursos que tem à mão, mantendo um olhar tão clínico como sensual sobre um quotidiano atravessado por fases depressivas, pela tensão às vezes difusa entre a cumplicidade e o abuso ou por fantasmas da presidência de Bolsonaro.

Filmando o sexo entre homens com espontaneidade e fintando tanto o pudor como o choque, acompanha a tentativa de equilíbrio entre desejo e paranóia do protagonista enquanto recusa dar prioridade a corpos masculinos de beleza estereotipada. E no caminho do desespero ao gozo vai sugerindo ser um realizador para continuar a seguir: de uma conversa por webcam que não perde o fôlego ao longo dos cerca de dez minutos de duração, sempre com plano fixo, à entrada em cena da belíssima "Cuidado, Paixão", de Letrux, num dos momentos mais bonitos do filme, há aqui um claro olhar de cineasta.

3,5/5

Três Tigres Tristes.jpg

"TRÊS TIGRES TRISTES", de Gustavo Vinagre: Vencedor do Teddy Award de Melhor-Longa Metragem do Festival de Berlim este ano, o novo filme do autor de "Vil, Má" (2020) e "Desaprender a Dormir" (2021) foi dos mais arriscados e refrescantes do QUEER LISBOA 26. Distopia divertidíssima ambientada numa São Paulo a lidar com uma pandemia de sinais particulares (e com efeitos na memória dos infectados), segue o caminho errático de três jovens pela cidade num registo episódico que não se contenta com um género.

A comédia, muitas vezes a tirar partido da irrisão camp, marca boa parte da viagem, mas há desvios para o musical ou acessos oníricos num filme invulgarmente solto e genuinamente queer. Entre piscadelas de olho à obra de John Waters, Pedro Almodóvar ou David Lynch, Vinagre conjuga o humor com uma ode aos marginalizados, sejam homo ou transexuais, trabalhadores do sexo, seropositivos ou idosos deixados ao abandono. E por isso este é um retrato que acaba por esbarrar na tragédia, no racismo, na homofobia ou no conservadorismo, embora opte por enfrentá-los com um sorriso tão insolente como a postura dos três protagonistas.

Se o elenco se mostra irregular e às tantas o argumento dispara em várias direcções, esta nunca deixa de ser uma experiência que mantém doses generosas de provocação, graça e carisma entre quadros visuais muito inspirados (o realizador tem bom olho tanto para exteriores como interiores, das avenidas paulistas a uma curiosíssima loja de velharias ou um cardume de antologia). Uma aparição fulminante de Inês Brasil e a escola "Ru Paul’s Drag Race" contribuem depois para algumas das cenas mais esgrouviadas e reforçam que "TRÊS TIGRES TRISTES" também é, à sua maneira, um filme sempre pop.

3,5/5