Que espaço têm hoje as salas de cinema nas cidades? Em "RETRATOS FANTASMAS", Kleber Mendonça Filho parte da sua experiência no Recife e propõe uma viagem entre memórias pessoais, mas sempre transmissíveis. Se há documentário que merece (mesmo) ser visto no grande ecrã, é este.
Em filmes anteriores, sobretudo "O Som ao Redor" e "Aquarius", um dos realizadores brasileiros mais celebrados dos últimos anos já tinha revelado uma forma muito particular de olhar e pensar a cidade - com o sentido de espaço a demarcar-se em dramas vincados pelo thriller lado a lado com uma curiosidade arquitectónica óbvia.
Na sua obra mais recente, Kleber Mendonça Filho volta ao Recife (depois do mergulho no Brasil profundo e distópico do frustrante "Bacurau"), de onde é natural e onde cresceu e vive, mas desta vez optando pelo documentário, como já tinha acontecido na sua primeira longa-metragem, "Crítico" (de 2008, que não passou pelo circuito comercial português). Não quer dizer que a ficção fique necessariamente de fora (como o desenlace trata de sublinhar), até porque este é um autor pouco interessado em fronteiras estanques entre géneros ("Todos os filmes de ficção são documentários sobre o tempo em que foram feitos", diz a certa altura deste filme no qual assegura a narração em off na primeira pessoa). Mas em "RETRATOS FANTASMAS" parte, como nunca até aqui, da sua própria história e da relação com a sua família, com o Recife e, claro, com o cinema. E em particular com os cinemas da sua cidade, cujas salas fervilhantes de outros tempos estão hoje, maioritariamente, em ruínas ou transformadas em igrejas ou armazéns.
Esse cenário não é, de resto, exclusivo desta cidade brasileira e tem sido testemunhado por espectadores de tantas outras metrópoles desse ou deste lado do Atlântico. Num filme dividido em três partes, o cineasta começa a viagem afectiva através das memórias do seu antigo apartamento, passa para o bairro que o envolve e acaba por se focar no centro do Recife, contrastando passado e presente com alguma melancolia embora sem alarmismos quanto ao futuro (o sentido de humor e o tom despretensioso ajudam muito).
Não se apresentando como uma autobiografia, "RETRATOS FANTASMAS" recua até aos dias em que Kleber Mendonça Filho se foi descobrindo cinéfilo e, mais à frente, realizador, integrando cenas de curtas-metragens caseiras (muitas vezes com salpicos gore de baixo orçamento) mas também das longas que lhe deram reconhecimento internacional.
Felizmente, quem não está familiarizado com a sua obra não se sentirá perdido nesta revisitação, porque esta está longe de ser uma experiência hermética, embora o mergulho nos bastidores tenha valor acrescentado para quem já a acompanha. De qualquer forma, os registos a que o autor recorre são bastante mais vastos: há aqui vídeos domésticos, conversas e entrevistas, imagens de filmes de terceiros e um cruzamento de vários formatos (Super 8, 16 e 35mm, VHS, Betacam, digital em 4k...) numa lição de montagem meticulosa e impressionante.
Desenvolvida ao longo de sete anos, esta ode à experiência comunitária e formativa do cinema em sala resulta num dos melhores documentários dos últimos tempos, tão sensível como acessível, tão urgente como didáctico (sem se sujeitar ao politicamente correcto) na captação da história de um espectador e das metamorfoses de uma cidade. E mesmo que o recurso regular à voz off desperte alguma desconfiança inicial, "RETRATOS FANTASMAS" nunca se torna verborreico - a sonoplastia não é menos exigente do que a de títulos anteriores, sobretudo quando o realizador mergulha em assombrações urbanas descendentes de escolas que lhe são caras, do terror ao thriller.
Um grande filme sobre o amor pelos filmes, como já o tinham sido na temporada 2022/2023 os muitos diferentes (mas não menos apaixonantes) "Os Fabelmans", de Steven Spielberg, e "Babylon", de Damien Chazelle.
Como reagir à saturação de super-heróis no cinema e noutros ecrãs? "HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO" dá uma resposta viável no melhor filme do género em anos, além de dar bom nome às sequelas. E é tão imaginativo e trepidante que até se desculpa ser só a primeira de duas partes...
Numa altura em que não faltam cada vez mais aventuras de super-heróis tanto no grande como no pequeno ecrã, com muitos recomeços, regressos ou spin-offs pelo meio, a saga de Miles Morales vem esclarecer, mais uma vez, que o problema não está no tipo de histórias em si.
Se "Homem-Aranha: No Universo Aranha" (2018) já tinha oferecido uma lufada de ar fresco nestes domínios, a aguardadíssima sequela não só não desilude como leva mais além as pistas lançadas, comprovando que ainda há (boas) ideias a explorar neste registo, e com direito a uma energia visual irrepreensível (a deixar a milhas a pobreza estética de boa parte das adaptações em imagem real da Marvel e da DC).
"HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO" volta a tirar o melhor partido de uma animação fresca e topo de gama, simbiose invulgar de digital e desenho à mão perfeitamente ajustada a uma narrativa que cruza personagens e realidades mais distintas e contrastantes do que nunca.
Não tem, claro, o efeito surpresa do antecessor, mas revela uma ambição ausente das habituais aventuras formatadas da maioria da concorrência. E aí, além da realização de Kemp Powers, Justin K. Thompson e do português Joaquim dos Santos (depois de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman no primeiro filme), há que aplaudir o argumento dos repetentes Phil Lord e Christopher Miller (a dupla de "O Filme Lego"), que ao lado de Dave Callaham ("Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis") moldam uma saga de grande fôlego, honrando a mitologia do super-herói amigo da vizinhança sem ficarem presos ao cânone.
O equilíbrio (ou disputa?) entre a tradição e a renovação é, talvez ainda mais do que na aventura anterior, o elemento-chave de uma história focada na solidão e no desajuste adolescentes, com o desejo de pertença e sobretudo de afirmação a guiar a jornada de Miles Morales. E também a de Gwen Stacy de uma realidade alternativa, promovida a co-protagonista depois de ter sido um dos grandes achados de "Homem-Aranha: No Universo Aranha".
O abraço às personagens alarga-se a uma vasta galeria de secundários, do núcleo familiar da dupla a novos rostos (mas alguns bem conhecidos dos fãs da BD) como Miguel O'Hara (o Homem-Aranha 2099, aqui especialmente intransigente), Jessica Drew (Mulher-Aranha numa versão grávida e motociclista), Hobie Brown (um Homem-Aranha punk, tão incrível como soa) ou Pavitr Prabhakar (a versão indiana do super-herói aracnídeo) - todas servidas por um elenco de vozes escolhido a dedo, com gente como Oscar Isaac, Issa Rae ou Daniel Kaluuya a juntar-se aos regressados Shameik Moore e Hailee Steinfeld.
"HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO" só não convence tanto na escolha do vilão, o que até é inesperado quando o protagonista tem alguns dos mais memoráveis dos comics: Spot, a ameaça de serviço, é tão esquecível (e tão esquecida pelo argumento) que se torna pouco mais do que uma desculpa para a história avançar. Mas aceita-se quando há outras tensões em jogo, mais desafiantes e a encorajarem que o filme fuja ao determinismo do género.
De qualquer forma, ainda é possível que Spot (com a voz de Jason Schwartzman) se transforme numa figura mais interessante na continuação. Afinal, esta é apenas a primeira parte de uma aventura que será concluída em "Spider-Man: Beyond the Spider-Verse", cuja estreia estava prevista para Março de 2024 mas foi recentemente adiada para data a avançar. É nesse apecto, de resto, que este capítulo intermédio de uma trilogia sai mesmo a perder face ao anterior, que tinha o mérito de ser autocontido (embora remetendo para um longo legado da BD e do cinema).
Quem for ver o filme sem ter esse pormenor em conta pode sair frustrado com um final em modo cliffhanger (mas que cliffhanger!), e até quem já vá à espera dessa limitação ficará, muito provavelmente, ansioso por mais. E no entanto, será difícil não considerar "HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO" uma experiência (muito) generosa ao longo das suas 2h20 de duração: se outras primeiras partes cinematográficas são pouco mais do que um prólogo insuflado (alô, "Dune - Duna" de Denis Villeneuve), esta é uma viagem emocional calorosa e formalmente vertiginosa, fértil em detalhes e a merecer revisionamentos. "Barbenheimer"? Numa realidade mais justa, este teria sido o Verão de Miles e Gwen...