A caminho dos 80 anos, Steven Spielberg assina um dos seus filmes obrigatórios ao revisitar a sua história pessoal e familiar. Melodrama em estado de graça, caloroso mas melancólico, "OS FABELMANS" é também uma bela homenagem ao cinema feito por uma das lendas vivas da sétima arte.
Podia chamar-se "Spielberg: A Origem", mas embora não faltem paralelos entre a vida do cineasta de "E.T. O Extra-Terrestre" e a sua obra mais recente, "OS FABELMANS" é, apesar de tudo, ficção. Uma ficção assente no quotidiano de uma família judia da classe média na América dos anos 50 e 60, à imagem da infância e adolescência do autor de um dos filmes mais celebrados dos últimos tempos - merecidamente, diga-se.
De onde vem a paixão de Spielberg pelo cinema? De que forma é que o seu núcleo familiar se relaciona com ela? E como é que o realizador fez as pazes com o divórcio dos pais, que acabou por ter eco em vários capítulos da sua filmografia? "OS FABELMANS" ajuda a clarificar estas questões, que lhe dão uma camada de interesse reforçada, mas nem precisava dessa ponte com a realidade para se afirmar como um melodrama superlativo e um filme que mergulha, pela enésima vez, na "magia do cinema", mostrando ser capaz de encontrar a sua própria voz nesses domínios (e distanciando-se, por exemplo, da ode do também magnífico e recente "Babylon", de Damien Chazelle).
Arrancando com uma sequência de "O Maior Espectáculo do Mundo", de Cecil B. DeMille, cuja espectacularidade converte o protagonista, Sammy, aos encantos da sétima arte ainda na infância, e terminando com um encontro com aquele que se tornaria um dos seus cineastas de referência (interpretado, numa opção desconcertante, por outro realizador icónico), é o retrato de um artista enquanto jovem mas já ciente do rumo que quer seguir, deslumbrado pelas possibilidades de escapismo enquanto lida com dores de crescimento num cenário familiar que passa de ameno a conturbado.
Escrito a quatro mãos pelo próprio Spielberg com o colaborador habitual Tony Kushner ("Munique", "Lincoln"), "OS FABELMANS" revela-se afectuoso e compassivo no retrato das relações humanas, mas praticamente imune aos excessos de sentimentalismo de que o seu autor é muitas vezes acusado. Há aqui uma abordagem madura ao afastamento de um casal que tem um impacto inesperado no percurso do filho, e tanto o pai como a mãe do realizador emergem como pilares da sua opção e paixão profissional - ele pelo estoicismo e vertente técnica, encorajando o interesse pela ciência, ela pelo sentido de aventura e descoberta, constante após o sonho de se tornar pianista profissional ter sido sempre adiado.
O resultado é especialmente intrigante quando o lado doméstico se cruza com a obsessão pelo cinema, sobretudo graças a um filme caseiro que surge como catalisador de um momento de viragem na forma como o protagonista encara a família e o modo de a retratar.
Numa sequência de antologia, "OS FABELMANS" propõe uma reflexão sobre o poder da montagem quando Steven (perdão, Sammy) aprimora os dotes de mestre manipulador ao ganhar consciência da decisão de escolher que imagens mostrar ou esconder. "A magia do cinema" ou "a grande ilusão"? Outras cenas centradas nas filmagens do protagonista durante a adolescência optam por uma ligação mais lúdica entre vida e arte, com tentativas deliciosas de realizar um western ou um filme de guerra, além de uma homenagem muito pouco sincera a um colega de escola antissemita.
Gabriel LaBelle, jovem actor que, mesmo com alguns papéis no currículo, nunca teve um palco como este, é outro pequeno grande milagre ao dar corpo e expressão perfeitos ao rapaz no centro deste singular relato coming of age. Mateo Zoryon Francis-DeFord, que encarna Sammy na infância, também é uma escolha certeira de um elenco que conta ainda com um seguríssimo Paul Dano, cuja sobriedade e doçura contrastam com a excentricidade de Michelle Williams, memorável como dona de casa desesperada e deprimida.
Talvez a personagem mais complexa de "OS FABELMANS", a mãe do protagonista destaca-se ainda como a sua maior cúmplice e instigadora, e uma das maiores qualidades do filme é recusar julgar esta mulher tão impulsiva como divisiva. Aos 76 anos, Spielberg parece finalmente compreendê-la depois de a câmara de "Sammy" ter revelado outras facetas...
Na estrada com novo álbum na bagagem, os METRIC têm apresentado "Art of Doubt" em palcos europeus e o de Barcelona foi um dos mais próximos de Portugal - por onde os canadianos nunca passaram. Entre as canções recentes e visitas ao fundo de catálogo, mostraram que além de contarem com uma discografia consistente são uma banda ainda mais impressionante ao vivo.
Revelados com "Old World Underground, Where Are You Now?" (2003), embora com um percurso que remonta a 1998, os METRIC estiveram entre a geração de bandas que ajudaram a despertar atenções para o panorama do rock alternativo canadiano de inícios do milénio - ao lado dos Broken Social Scene, Stars ou, claro, Arcade Fire -, e desde aí têm mantido uma das discografias mais confiáveis tanto dessa cena como da que revisitou o pós-punk também na alvorada dos anos 00.
"Art of Doubt", o sétimo e novo álbum, aí está para o provar, e é dos mais aconselháveis de uma carreira que, descontando o antecessor "Pagans In Vegas" (2015), tem sido imune a pontos baixos. Depois de uma viragem electrónica que não convenceu especialmente nem os fãs nem a crítica (e que, não por acaso, foi ignorada no alinhamento do concerto), o quarteto retomou as guitarras num disco que sai a ganhar (e muito!) com o salto para o palco, cenário natural para uma série de canções frenéticas e urgentes - algures entre a new wave dos anos 80 e algum rock dos 90 sem ficarem reféns de exercícios saudosistas.
Como testemunhou quem viu a banda na Sala Bikini, em Barcelona, a 11 de Novembro, os METRIC são uma máquina impecavelmente oleada ao vivo, graças a uma coesão rítmica que tem correspondência à altura na voz e presença de Emily Haines, mestre de cerimónias calorosa e capaz de se encarregar de vários instrumentos ao longo da actuação - da guitarra aos teclados, passando pela pandeireta.
Essa eficácia não será de estranhar num percurso com mais de 20 anos e uma experiência considerável em palcos, mas é bom ver que o grupo mantém um viço a milhas da rotina de alguns contemporâneos. Prova disso foi o arranque do concerto, a cargo de "Love You Back", que nem será das canções obrigatórias de "Art of Doubt" e ainda assim foi mais do que suficiente para um arranque em alta, cortesia da voz expressiva e versátil de Haines e do balanço dançável criado por James Shaw (com uma coolness indefectível na guitarra), Joshua Winstead (mais descontraído no baixo) e Joules Scott-Key (a assegurar que a bateria tem um peso que não se ouve nos discos).
Confiante e imponente em canções como essa ou "Youth Without Youth", outra a marcar a abertura, a vocalista mostrou-se mais vulnerável quando se dirigiu ao público para apresentar "Risk". O tema, explicou, quase ficou de fora do alinhamento da noite por se ter tornado, repentinamente, a canção mais dolorosa de "Art of Doubt". "Quando a compus pensei que se referia a uma situação que tinha ficado arrumada no passado, mas estou a vivê-la novamente no presente", confessou. "A música tem esta característica curiosa, ao partir de emoções. Não há nada de errado com a minha voz hoje, mas o meu coração está despedaçado... por isso torna-se árduo enfrentar estas memórias", explicou.
Foi uma confissão visivelmente desarmante para muitos fãs, mas Haines realçou que decidiu manter o tema no alinhamento porque "sabia que não estava sozinha". E a chuva de aplausos confirmou-o. "Aqui sei que só vou receber amor", assinalou, antes de se entregar a um dos pontos altos de uma noite que soube conciliar energia e emoção ao longo de quase duas horas.
Tal como "Risk", as outras canções da nova colheita - "Dressed to Suppress", "Holding Out", "Now or Never Now", "Dark Saturday" e a faixa-título - foram tão bem recebidas como as antigas, feito não muito habitual em artistas com uma discografia relativamente longa. E foram todas exemplos do lado mais expansivo de "Art of Doubt", a dar conta de uma banda com perfil de estádio embora ainda remetida ao espaço de um pequeno clube. Melhor para quem lá estava e assim pode vê-la bem de perto, numa sala concorrida e com uma sintonia palpável entre os canadianos e o público - o facto de ter sido a estreia dos METRIC na cidade espanhola terá ajudado.
"Como é que demorámos tanto tempo a vir a Barcelona? É tão estúpido, mas somos uma banda pequena e queremos ver o mundo todo... e o mundo é muito grande", sublinhou Haines (as promotoras portuguesas bem podiam aproveitar a deixa para a convidar, que a espera já vai longa). Noutra das ocasiões em que se dirigiu aos fãs, contou que ficou surpreendida quando regressou a "Fantasies" (2009) e redescobriu uma das canções mais obscuras do álbum. "As canções são pequenas cápsulas temporais, mas esta, apesar de já ter uns anos, ilustra bem o mundo disperso de hoje e a forma como o vivemos, entre redes e partilhas", disse.
A tal canção, "Blindfold", uma das mais contidas da noite, foi também daquelas onde a voz mais sobressaiu e brilhou, revelando uma facilidade invulgar de se mover entre a crueza e a doçura. E essa doçura atingiria o ponto de rebuçado em "Gimme Sympathy", um dos maiores hinos dos METRIC e com direito a uma sala cheia como coro. Tão ou mais irresistível, "Black Sheep", da banda sonora de "Scott Pilgrim Contra o Mundo", ficou como combinação exemplar de sentido melódico e apelo rítmico, com uma power pop que levou a uma disseminação de saltos entre o público - Haines deu o mote, como noutras canções em que se mostrou imparável.
Já no encore, "Combat Baby" e "Dead Disco" serviram finalmente clássicos do álbum de estreia, acolhidos (literalmente) de braços abertos e gritados a plenos pulmões pelo público. A segunda canção foi especialmente fulminante, ou não estivesse entre as maiores explosões de adrenalina dos METRIC - enquanto pede emprestado o melhor da atmosfera de densa "A Forest", dos The Cure. Na despedida os braços continuaram no ar, ao ritmo do refrão insistente e galvanizante de "Help I'm Alive", último acesso de energia de um concerto magnético e fervilhante. "Que reina, me encanta!", confessava, eufórico e sorridente, um fã das primeiras filas. E essa terá sido, sem grandes dúvidas, uma opinião consensual depois de se ter visto uma banda no auge, com uma combinação feliz (e invulgar) de veterania e frescura...