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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Conto de Inverno

Ganhou o Grande Prémio do Júri no Festival de Veneza e foi seleccionado para representar Itália na corrida a Melhor Filme Internacional da mais recente edição dos Óscares. E esses e outros aplausos fizeram-lhe justiça: "VERMIGLIO", o novo drama de Maura Delpero, é exemplo de um cinema tão depurado como comovente.

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Em exibição nas salas nacionais (embora em menos do que merecia), "VERMIGLIO" está longe de ser inédito por cá: já integrou a programação do LEFFEST - Lisboa Film Festival em 2024, fez parte da Festa do Cinema Italiano deste ano e não será exagero dizer que esteve entre as apostas mais memoráveis dos dois eventos. Mesmo que seja um filme que recusa chamar a atenção para si próprio: a terceira longa-metragem de Maura Delpero, realizadora italiana com experiência na ficção e no documentário, é das mais sóbrias e contidas da temporada, qualidades que não a impedem de vincar um triunfo formal e emocional.

Inspirado em relatos familiares da autora, recua até à Itália entre 1944 e 1945, em particular a uma pequena localidade rural alpina (que dá título ao filme). O facto de decorrer nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial não é um pormenor: o mote narrativo dá-se com a chegada de um desertor à pequena vila, acolhido pela numerosa família protagonista e responsável por movimentações graduais na dinâmica desta. Esse impacto é mais evidente no quotidiano da filha mais velha e sinaliza uma das questões-chave do retrato de Delpero: o universo feminino, explorado através das histórias cruzadas de três irmãs de idades, personalidades e ambições distintas.

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Mas mais do que feminino, "VERMIGLIO" é feminista, ainda que com uma subtileza nada compatível com a de quem grita palavras de ordem ou se vale de simplismos e generalizações. A forma como a realizadora (que também assina o argumento) encara o patriarca da família, um velho professor muito considerado na região, é revelador de alguém que abraça todas as suas personagens, dando a ver contradições sem cair em julgamentos.

A autora não passa ao lado do machismo, com influência directa em todos os subenredos, mas propõe um olhar compassivo num drama que concilia questões de género com as da fé ou da sexualidade - e consegue evitar cair na vitimização e no fatalismo, armadilhas insinuadas a espaços, desviando-se também de lirismos bucólicos.

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A solidez de todo o elenco, dos adultos às crianças, sustenta um efeito realista que começa logo na realização meticulosa e na brilhante direcção de fotografia (granulada e invernal, a cargo de Michail Kricman). Filmado com luz e som naturais, "VERMIGLIO" documenta um microcosmos credível marcado por um forte sentido atmosférico - alguns planos e enquadramentos remetem para a pintura, mas o gesto estético de Delpero não se sobrepõe à carga dramática.

A vasta galeria de personagens leva a que a realizadora nem sempre tenha tempo para chegar a todas com a mesma dedicação (a mãe e o irmão mais velho mereciam maior desenvolvimento) e impõe algumas limitações narrativas (como uma viagem à Sicília demasiado repentina e acelerada perto do fim), mas esses acabam por ser pormenores numa obra quase sempre em estado de graça - e para juntar à lista das melhores do ano.

4/5

Festejemos a nova selecção italiana

Quase a despedir-se de Lisboa e prestes a chegar a Aveiro, Funchal ou Braga, a 18.ª edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tem, entre muitos outros destaques, cinco filmes em competição. "DICIANNOVE" e "FAMILIA" são dos mais estimulantes dessa mostra de novos realizadores.

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"DICIANNOVE", de Giovanni Tortorici: Primeira obra de um realizador que foi assistente de realização de Luca Guadagnino na brilhante série "We Are Who We Are" (HBO/Sky Atlantic), este drama inventivo e idiossincrático conta com o cineasta de "Chama-me Pelo Teu Nome" e "Challengers" entre os produtores e também se debruça nas questões sempre férteis da entrada na idade adulta.

Parcialmente autobiográfico, deixa um retrato da solidão, acompanhada de alguma repressão e alienação, de um estudante de literatura numa jornada emocional e geográfica (entre Palermo, terra natal de Tortorici, Londres, Siena e Turim). Mas apesar de reconhecer as dificuldades do crescimento, este retrato aplaudido no Festival de Veneza (e nomeado em duas categorias) não se leva demasiado a sério, condimentando as viagens com um olhar escarninho e irónico.

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Boa parte do sentido de humor deriva logo de pormenores deliciosos da montagem, com o recurso a zooms e cortes abruptos a sublinhar o saudável experimentalismo formal de um filme que dificilmente se confunde com outros testemunhos do adeus à adolescência. Mesmo que algumas particularidades nem sempre o favoreçam: "DICIANNOVE" é por vezes demasiado episódico, com uma colagem de vinhetas de inspiração variável e uma certa auto-indulgência, à medida de um protagonista insolente e pedante.

Manfredi Marini, numa estreia muito promissora na representação, aguenta bem o olhar obsessivo da câmara (que não prescinde dele em nenhuma cena), com uma presença que chega a lembrar o Xavier Dolan actor ao longo de um filme que também parece ter ecos do Xavir Dolan realizador - e que por isso se arrisca a despertar reacções tão extremadas como muitos filmes desse "enfant terrible" canadiano. Mas será difícil não reconhecer aqui talento...

3/5

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"FAMILIA", de Francesco Costabile: O realizador de "Una femmina" (que passou pela Festa do Cinema Italiano há três anos) afirma-se como um nome a seguir nesta adaptação de "Non sarà sempre così" (2017), livro autobiográfico de Luigi Celeste.

Mergulho intenso nos ciclos de violência que questiona a possibilidade de redenção, é a história de uma família na qual o realismo social aceita contaminações do thriller e faz tangentes ao terror, códigos que marcam um quotidiano de abuso físico e psicológico por parte da figura paterna.

Algures entre o recente "Brincar com o Fogo", drama de Delphine e Muriel Coulin no qual a personagem de Vincent Lindon se debate com um filho seduzido pelo fascismo, e o mais distante "Custódia Partilhada", de Xavier Legrand, também atravessado por um caso de violência doméstica levado ao extremo, "FAMILIA" evita demonizações fáceis enquanto demora o seu tempo a revelar o foco narrativo.

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O protagonista acaba por ser um dos filhos, interpretado na idade adulta por Francesco Gheghi (Prémio de Melhor Actor no Festival de Veneza), tremendo na pele de uma figura ambígua e com um conflito interior que o filme nunca simplifica. Mas é pena que as personagens da sua mãe e irmão acabem menos exploradas do que o arranque sugeria, com o argumento a privilegiar o pai, a cargo do veterano Francesco Di Leva (outra interpretação fortíssima entre um elenco todo merecedor de aplausos).

O desenlace também não estará à altura de outros momentos, embora a carga visceral e urgente desses seja tão bem captada por Costabile que "FAMILIA" nunca deixa de ser uma experiência tão memorável como recomendável - e das melhores descobertas desta edição da Festa, a pedir estreia em sala.

3,5/5