2023 está a revelar-se um ano feliz para o cinema de animação português e um dos bons exemplos disso ainda pode ser testemunhado nas salas. "OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ", a primeira longa-metragem de Nuno Beato e também a primeira que se fez por cá em stop motion, merece um público dos 7 aos 77 (e mais além).
Depois da muito celebrada "Ice Merchants", a curta-metragem de João Gonzalez que ganhou lugar na corrida aos Óscares (com toda a justiça, diga-se), e de "Nayola", a aguardada longa de José Miguel Ribeiro ("A Suspeita"), o ano cinematográfico volta a acolher uma produção nacional de animação, vinda de um dos nomes que mais se tem distinguido no género - sobretudo como produtor através da Sardinha em Lata, mas também já com experiências na realização, caso da bem acolhida "Mi vida en tus manos" (2009).
"OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ", que chegou às salas nacionais depois de ter tido nomeações no Festival de Annecy (onde passou em antestreia mundial) ou nos Goya, é um filme que merece ser visto em vários ecrãs do mundo sem precisar de abdicar de uma clara identidade portuguesa. Tendo o interior nortenho como inspiração, esta história que viaja da cidade para o campo - a localidade fictícia de Vale de Sarronco - propõe um regresso às origens da protagonista, uma jovem adulta que interrompe o frenesim profissional quando tem de se confrontar com a morte do avô, a figura que mais a acompanhou durante a infância e a adolescência.
Mas esse é só o primeiro confronto de muitos num remoer de memórias pessoais, familiares e comunitárias, entre fantasmas (ou antes demónios) do passado e a estranha animosidade dos habitantes da aldeia que recebem esta neta pródiga - alguns com duas pedras na mão, de forma quase literal.
De heranças inesperadas a ressentimentos antigos com eco palpável no presente, este mergulho interior (em mais de um sentido) encara o campo como cenário sem grande serenidade pastoral. O argumento de Cristina Pinheiro e Possidónio Cachapa evita estereótipos bucólicos e convoca tormentos com sugestões sobrenaturais e oníricas, do fantástico e até do terror, em boa parte graças à presença sinuosa de figuras de barro descendentes da obra de Rosa Ramalho.
Arrancando com animação digital 3D, apropriada à frieza e ritmo acelerado dos ambientes urbanos, "OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ" transita habilmente para a técnica stop motion (fotograma a fotograma) assim que a acção se instala em Vale de Sarronco - o episódio da chegada é, aliás, uma das cenas de antologia, a abrir a porta à capacidade de maravilhamento artesanal que o filme consegue ir mantendo.
Da fotografia de tons alaranjados e sépia de Celia Benavent a uma banda sonora de alma anciã com a contribuição dos Gaiteiros de Lisboa, todos os pormenores contam para a singularidade de um olhar sobre o reencontro e a redescoberta desenhado com esplendor visual e sensibilidade emocional - as vozes de Victoria Guerra, António Durães ou Ana Sofia Martins também ajudam.
Nesta valorização da tradição, "OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ" talvez force a nota quando tenta promover a "desintoxicação" virtual (sobretudo através da personagem um colega de trabalho da protagonista) e o desfecho não escapa a algumas conveniências de argumento. Mas esses são detalhes mais do que compreensíveis numa primeira longa-metragem que, no essencial, dá provas de uma segurança impressionante. Um marco criativo a celebrar, inaugurando com rasgo e personalidade um capítulo de viragem no cinema que se faz dentro de portas.
É provavelmente o filme português mais celebrado do ano, está a caminho de ser tornar o mais visto e o entusiasmo justifica-se: "LISTEN", de Ana Rocha de Sousa, tem uma mensagem urgente mas que não ofusca o olhar de uma cineasta promissora.
Multipremiado na mais recente edição do Festival de Veneza e um fenómeno de bilheteira por cá, mesmo em tempos de pandemia, "LISTEN" é um filme que marca o ano como poucos. E merece ser descoberto não só pela sensibilidade com que aborda questões controversas - a adopção forçada dos filhos de um casal de emigrantes portugueses em Inglaterra -, mas também pela forma como traz para o cinema nacional heranças do realismo britânico. Essa filiação não será estranha, tendo em conta a passagem de Ana Rocha de Sousa pela London Film School, e um dos elementos que mais se destacam nesta primeira longa-metragem é a crueza dos ambientes (o que não é sinónimo de frieza emocional) e a economia narrativa, rara numa estreia (a duração vai pouco além dos 70 minutos).
Ao relatar de forma tão despojada e engajada o quotidiano de uma família num momento crítico, olhando de frente para as desigualdades sociais e as injustiças de um sistema que não protege os mais vulneráveis, "LISTEN" não anda longe de territórios do britânico Ken Loach ou dos belgas irmãos Dardenne, limando a componente panfletária de algumas obras do primeiro e aproximando-se da ambiguidade dos segundos.
Mas embora essas comparações tenham sido habituais, Ana Rocha de Sousa aponta antes o cinema do japonês Hirokazu Koreeda ou da libanesa Nadine Labaki como referências, o que talvez ajude a explicar o lirismo de alguns episódios entre a angústia e a exasperação que dominam o filme. É o caso das cenas com Lu, a filha do casal protagonista, uma menina surda cujo olhar comovente diz tudo o que não pode ser expressado por palavras - e a certa altura, nem por gestos, quando apenas a linguagem verbal passa a ser permitida.
Com uma interpretação tão contida como memorável, a pequena Maisie Sly é um dos achados de um elenco coeso, a aliar uma realizadora promissora a uma directora de actores segura. Lúcia Moniz e Ruben Garcia compõem um casal credível e os secundários, sobretudo as personagens dos empregados dos serviços sociais, contribuem para que haja sempre uma faceta humana numa disputa que se poderia tornar facilmente maniqueísta (e aí percebem-se as comparações com Ken Loach, ou pelo menos com "Eu, Daniel Blake", que também recusava demonizar os agentes do sistema).
Partindo de várias situações verídicas de desagregação familiar forçada - e muitas vezes de legitimação questionável, capaz de traumatizar pais e filhos -, Ana Rocha de Sousa deixa um alerta ficcionado num drama escorreito e sem grandes paralelos formais no cinema que se faz por cá (embora esta não seja uma produção 100% portuguesa, antes luso-britânica), estando mais na linha de um retrato justo da precariedade contemporânea como o de "Rosie - Uma Família Sem Teto", do irlandês Paddy Breathnach (também recente mas infelizmente pouco visto).
Ainda assim, às vezes o efeito realista é comprometido por algumas cenas que ameaçam cair no overacting (como as das discussões conjugais), por um ou outro diálogo (caso da videochamada da personagem de Lúcia Moniz com a mãe, demasiado óbvia na denúncia das limitações da Segurança Social britânica) ou pelo modo apressado como o argumento coloca em cena uma aliada do casal protagonista (figura que talvez ganhasse com um olhar mais demorado, tal como a do filho mais velho). Mas são limitações compreensíveis numa primeira longa-metragem que se dirige ao coração do espectador sem subestimar a sua inteligência - e logo por aí deixa vontade de o recomendar e de continuar a seguir o percurso da sua autora.