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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Da Galiza à Palestina e outros mundos

Embora a mais recente edição do FESTIVAL MÚSICAS DO MUNDO (FMM) não tenha contado, à partida, com nomes internacionais tão sonantes como noutros anos, manteve firme o convite à descoberta. HAYA ZAATRY, CAAMAÑO & AMEIXEIRAS, AVALANCHE KAITO, MOTICOMA E RIZAN SAID foram alguns dos que fizeram valer o salto a Sines - e todos com concertos de entrada livre.

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Sofia Costa/FMM

"Estou aqui enquanto o meu povo está a ser morto. É muito difícil para mim, mas espero trazer-vos um pouco da Palestina", confessou HAYA ZAATRY ao iniciar o seu concerto no Pátio das Artes, em Sines, no passado sábado, 27 de Julho.

Inaugurando as actuações do último dia do festival que tinha arrancado no dia 20, em Porto Covo, a cantautora nascida nos chamados "territórios de 48" (reclamados por Israel, mas vistos pelos palestinianos como zonas de ocupação forçada) apresentou uma actuação que dificilmente poderia passar ao lado do conflito que tem causado milhares de mortes em Gaza nos últimos meses.

Mas as questões históricas, geográficas e identitárias já marcavam o primeiro (e até agora, único) álbum da artista, "Rahawan" (2022), inspirado no percurso da sua tetravó Nazira Rahawan. "Era mais livre do que eu", sublinhou a um público atento e solidário, que aderiu em massa ao recinto mais diminuto do FMM (uma grande bandeira palestiniana saltava à vista nas primeiras filas, gritos repetidos de "Free Palestine" pontuaram o final do concerto). 

Além das canções do disco, houve espaço para uma já nascida depois dos massacres israelitas que reagiram, de forma inegavelmente desproporcional, aos ataques do Hamas de 7 de Outubro de 2023. Mas nem nesse tema HAYA ZAATRY abdicou da serenidade que domina a sua música, entre cruzamentos da tradição árabe e aproximações ao trip-hop ou à dream pop (estas mais evidentes ao vivo do que no álbum).

Aliando voz, guitarra eléctrica, teclados e programações electrónicas, o concerto lembrou por vezes a música da libanesa Yasmine Hamdan (protagonista de um espectáculo memorável no FMM em 2018), ainda que com uma atmosfera mais contida.

Melancólica em "Aloudi", mais esperançosa em "Baladi", a cantautora voltou a levar inquietações migratórias ao Pátio das Artes um ano depois de os Bedouin Burger (projecto do libanês Zeid Hamdan e da síria Lynn Adib) se terem destacado, no mesmo espaço - e, curiosamente, também no último dia do festival - como outra revelação árabe capaz de as abordar num formato intrigante. Só é pena que as limitações do recinto impeçam que todo o público possa desfrutar plenamente da experiência, sobretudo os espectadores que já não conseguem lugar à sombra numa tarde quente e ensolarada.

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Gonçalo Sá

Pelo Pátio das Artes passaram também, mas no dia 25, CAAMAÑO & AMEIXEIRAS, dupla galega que já tinha actuado em Portugal no Festival MED, em Loulé, em 2023. "Esperámos anos para subir ao palco em Sines", confessaram Sabela Caamaño (acordeão cromático) e Antía Ameixeiras (violino e voz), com uma postura bem-humorada e entusiasmo visível. Dando novo fôlego à música tradicional da Galiza, juntaram o sagrado e o profano, a vida e a morte, em temas tendencialmente celebratórios, tanto os instrumentais (alguns com ecos medievais) como os cantados.

Em foco esteve, sobretudo, o seu segundo álbum, "Quitar o aire" (2023), muito bem defendido através de algumas das suas melhores canções, desde "A pequena morte", com uma disputa de violino e acordeão em crescendo, a "Santa Mariña", a tirar partido das harmonias vocais e a receber palmas do público como acompanhamento. Do primeiro disco, "Aire!" (2021), sobressaiu "Maribel", história verídica de uma galinha que conseguiu fugir de uma vida de reclusão. Um percurso inspirador, aponta o duo, defendendo que "precisamos de sair do galinheiro". Haya Zaatry concordaria, infelizmente pelos piores motivos.

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Nuno Pinto Fernandes/FMM

Já a fechar a 24.ª edição do FMM, o Palco Galp, junto à Praia Vasco da Gama, acolheu na madrugada de 27 para 28 de Julho três apostas certeiras. Os AVALANCHE KAITO, trio formado pelos músicos belgas Benjamin Chaval (bateria e sintetizadores) e Nico Gitto (guitarra) e pelo cantor burquinense Kaito Winse, fizeram jus ao nome com um ataque sónico que desfez fronteiras entre rock e raízes africanas. Chamam-lhe "griot punk noise" e pareceu uma definição apropriada para o portento instrumental com agitador à altura na figura do vocalista (que também tocou flauta). Tal como nos discos (o homónimo, de 2002, e o recente "Talitakum"), impõs-se mais a energia do que as canções, mas é difícil negar-lhes a eficácia em palco (que também terá sido testemunhada um dia antes no festival L'Agosto, em Guimarães).

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Mário Pires/FMM

Com calor e furor, brilharam depois os MOTICOMA, colectivo moçambicano que nasceu de uma ideia de renovação de ritmos tradicionais de várias regiões do seu país. Munido de uma alegria contagiante, não demorou a ver correspondido o apelo à dança num recinto amplamente preenchido a altas horas. Valendo-se de uma coesão instrumental inatacável, entre guitarra, baixo, mbira, bateria e congas, e a função de mestre de cerimónias entregue ao vocalista, Zamby, foi um concerto especialmente vibrante quando o saxofone ganhou protagonismo e aproximou esta tradição de outras, como a do jazz mais efusivo. A febre de sábado à noite do FMM deu-se aqui.

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Mário Pires/FMM

Por último, mas não menos viciante, RIZAN SAID ofereceu a actuação que encerrou o FMM 2024 com chave de ouro. Ou teclados de ouro, não fosse este artista sírio o "King of Keyboard", título de um dos seus discos. Partindo da música tradicional do Médio Oriente e aceitando contaminações techno ou house, o compositor, instrumentista e produtor veterano pode orgulhar-se da proeza de ter mantido uma multidão em estado frenético até ao amanhecer (terminou às 6h30). Kaito Winse, dos Avalanche Kaito, não resistiu a subir a palco para dançar e atiçar (ainda mais) o público a meio, mas esta máquina de ritmos provou aguentar-se muito bem por si só. Apesar da presença da percussão ao vivo em alguns momentos, os teclados foram dominantes e às vezes lembraram os do conterrâneo Omar Souleyman, mais popular por cá. RIZAN SAID, no entanto, teve a vantagem de não esgotar as ideias ao fim de 20 minutos, garantido que esta hora e meia se mantivesse aliciante, descontando alguma redundância ocasional.

Terminada esta edição do FMM (que contou ainda, entre muitos outros, com um grande concerto dos portugueses Cara de Espelho), a próxima já foi entretanto confirmada. E promete ser especial, ao marcar os 25 anos do evento. Para já, sabe-se que terá um dia extra, em Porto Covo, e que a autarquia de Sines está a considerar "várias soluções, várias propostas" para a celebrar.

Um concerto "genuinamente português"

O FESTIVAL MÚSICAS DO MUNDO (FMM) é dado à surpresa global, mas um dos pontos altos da 24.ª edição foi uma certeza nacional: CARA DE ESPELHO, supergrupo muito aplaudido no Castelo de Sines depois de ter editado um dos grandes álbuns de estreia do ano.

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Gonçalo Sá

Afinal, o que é isso de ser genuíno? A pergunta foi feita, mais de uma vez, por Maria Antónia Mendes (ou Mitó, "para os amigos"), em "Genuinamente", canção que olha com ironia para questões identitárias e é dos exemplos recentes da escrita afiada de Pedro da Silva Martins, outro elemento (assume a composição e a guitarra) do projecto que junta músicos dos Gaiteiros de Lisboa, Ornatos Violeta, Deolinda ou A Naifa.

Hino à mistura sem fronteiras, o tema dificilmente poderia ter palco mais apropriado do que o do festival que decorreu de 20 a 27 de Julho, em Porto Covo e Sines, e voltou a celebrar música de várias geografias e géneros.

Uma das maiores celebrações foi mesmo a do supergrupo cuja formação conta ainda com Carlos Guerreiro (multi-instrumentista), Luís J. Martins (guitarra), Nuno Prata (baixo), Sérgio Nascimento (bateria) e Gonçalo Marques (multi-instrumentista), responsável pela corrida de um público dos 7 aos 77 (ou mais além) ao Castelo de Sines no final da tarde da passada sexta-feira, dia 26 (num concerto de entrada livre, como cerca de 70% dos espectáculos do FMM).

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Nuno Pinto Fernandes/FMM

Depois de, em Janeiro, terem inscrito o disco de estreia homónimo entre as grandes surpresas nacionais de 2024, os CARA DE ESPELHO mostraram saber defendê-lo em palco. Mais até do que quando o apresentaram, em Março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Se aí ofereceram uma actuação coesa, mas talvez um tanto contida, em Sines foram substancialmente mais desenvoltos e mobilizadores. Resultado, talvez, do ambiente de festival aliado à experiência conjunta de palco que acumularam nos últimos meses.

O aniversário de Carlos Guerreiro, músico que fez nesse dia 70 anos, também ajudou, e nem foi preciso grande incentivo para que o público lhe cantasse os parabéns. Mitó aproveitou a ocasião para enaltecer o legado do fundador dos Gaiteiros de Lisboa e de outros veteranos da música portuguesa, como o recentemente falecido Fausto Bordalo Dias.

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Nuno Pinto Fernandes/FMM

"Estamos aqui para vos reflectir", assinalou a vocalista pouco antes, no início do concerto. Missão mais do que cumprida, sinalizou o público ao longo de cerca de uma hora, quer já fosse conhecedor do projecto ou nem por isso. E de facto, há poucos discos que traduzam melhor o que é ser (genuinamente) português aqui e agora do aquele que guarda "Paraíso Fiscal", "Fadistão" ou "Testa de Ferro". Ou também, claro, "Dr. Coisinho", tema inspirado no líder do Chega, André Ventura, que levou uma multidão a levantar o dedo do meio quando Mitó entoou "coisifique aqui o dedo".

Nestas canções de intervenção tanto cabe a raiz portuguesa ("Corridinho Português") como languidez africana ("Livres Criaturas") e ecos pós-punk ("Político Antropófago", com direito a final efervescente ao vivo), mas a mistura pode estar só a começar. Sinal disso foram temas não incluídos no álbum que também subiram a palco, tão entusiasmantes (e galvanizadores) como a colheita inicial, caso de "Roda do Crédito" ou "O que esta gente quer?". Respondendo à pergunta lançada pela segunda canção, a vocalista defendeu que "esta gente quer paz e igualdade e que haja quem lute por elas". Abram-se portas de salas (e castelos) a mais artistas e concertos como estes, então.