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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

A zona de interesse (e uma estreia bem interessante)

Ficção científica cruzada com realismo social, "THE KITCHEN" é uma das novas apostas da Netflix e apresenta uma dupla de realizadores a ter debaixo de olho: Daniel Kaluuya (actor que se estreia aqui atrás das câmaras) e Kibwe Tavares.

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Não faltam ideias ao filme com créditos de realização partilhados entre um dos actores britânicos mais aplaudidos dos últimos anos e um autor de curtas que se aventura na primeira longa. Daniel Kaluuya também assume, ao lado de Joe Murtagh ("Gangs of London"), o argumento deste retrato distópico (mantendo assim um percurso paralelo de argumentista iniciado na já distante série "Skins"), e interpreta ainda uma das personagens secundárias, num exemplo de entrega total a um "labour of love" que começou a ser pensado há mais de uma década.

O cuidado com o desenho deste mundo, uma Londres futurista e extremista, é evidente logo aos primeiros minutos e não demora a conseguir um efeito imersivo. Nada mal para uma primeira longa que, além de uma lista de produtores executivos da qual se destaca o nome de Michael Fassbender, terá beneficiado do currículo de arquitecto de Tavares - o bairro que dá título ao filme, último refúgio de minorias empobrecidas que recusam sair apesar de avanços policiais, é uma combinação vívida de heranças do realismo social e sugestões sci-fi.

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Num momento em que a gentrificação, a especulação imobiliária, o autoritarismo ou a xenofobia dominam manchetes, "THE KITCHEN" oferece um caldeirão oportuno e imaginativo de tensões sociais, partindo da história um homem cuja mudança desse território de resistência para um complexo habitacional sofisticado é ameaçada pela cumplicidade repentina com um adolescente órfão.

A luta de classes, tema caro ao cinema britânico, está no centro de um filme que arranca com contornos de thriller e vai cedendo espaço a um drama humanista, viragem acompanhada de alguns problemas de ritmo e a expor limitações de um argumento que prometia voos mais altos. Por outro lado, há dois trunfos que nunca falham entre esses desequilíbrios: Kane "Kano" Robinson e Jedaiah Bannerman, o primeiro a manter a intensidade que já tinha demonstrado em "Top Boy" (série que provou que além de músico havia aqui um actor), o segundo uma jovem revelação com uma segurança invulgar no seu primeiro papel.

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A química entre a dupla protagonista é tão vibrante como a atmosfera urbana de um mundo não muito longínquo, qualidades de uma visão capaz de se impor mesmo não deixando de se aproximar de outras a espaços (de "Os Miseráveis" de Ladj Ly a "Attack the Block", do mais recente "Gagarine" a alguns episódios de "Black Mirror", há muitas hipóteses de parentes próximos).

E se é pena que secundários como o activista encarnado por Hope Ikpoku Jnr (outro talento valioso encontrado em "Top Boy") não cheguem a ter o desenvolvimento que se esperaria, sequências contagiantes como a de uma festa comunitária (bem-vindo momento de descompressão e ode sentida à cultura negra) dão novo fôlego a relatos com estes contornos  - e ajudam muito a dar o voto de confiança a mais encontros criativos entre Kaluuya e Tavares.

3/5

Ao serviço de sua majestade

Aventurando-se no filme de época, Maïwenn dirige, protagoniza e é coargumentista de "JEANNE DU BARRY - A FAVORITA DO REI", retrato da corte de Luís XV nos últimos anos do monarca francês, encarnado por Johnny Depp - aqui no seu melhor desempenho em anos. Da colaboração nasceu uma das estreias mais majestáticas da recta final de 2023.

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O novo filme da autora de "Polissa" (2011) e "Meu Rei" (2015) tem sido mais falado pela polémica em torno de um crítico francês (agredido pela realizadora) ou pela participação de Johnny Depp (também ele envolvido numa controvérsia ainda maior, a discussão com a ex-mulher Amber Heard nos tribunais em tempo real) do que pelas suas qualidades, e é pena. Afinal, esta viagem à corte parisiense de meados do século XVIII marca uma transição assinalável numa obra de dramas crus e urbanos e de ficções atravessadas pelas possibilidades do documentário (estas últimas inéditas no circuito comercial português).

Ainda assim, "JEANNE DU BARRY - A FAVORITA DO REI" teve honras de abertura da mais recente edição do Festival de Cannes, na qual Depp foi amplamente ovacionado. E se o desempenho do norte-americano merece elogios, ao traduzir com ironia um Luís XV entregue ao cansaço e ao tédio (parcialmente interrompidos pela chegada de uma nova amante), o filme tem outros méritos, mesmo que talvez não seja tão arrojado como alguns títulos anteriores de Maïwenn fizessem esperar.

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Uma das grandes surpresas deste retrato é, aliás, a sobriedade, elegância e até doçura que mantém sem abicar de um gosto óbvio pela sátira aos protocolos e costumes do quotidiano de Versalhes (o filme foi rodado no palácio e a câmara tira todo o partido disso, com um fulgor estético muito acima da norma formatada do pequeno ou grande ecrã). Há alguma acidez pontual, como na caracterização das filhas do rei, autênticas réplicas das irmãs mesquinhas de Cinderella (o tom de fábula também passa por aqui, cruzado com um olhar realista), mas Maïwenn, acompanhada pelos coargumentistas Teddy Lussi-Modeste e Nicolas Livecchi, está muito longe da crueza e desespero de outras crónicas.

A sua protagonista até surge como a mais recente derivação do arquétipo da "prostituta com coração de ouro", mas esse é, felizmente, apenas o ponto de partida para apresentar uma figura de corpo inteiro, uma mulher à frente do seu tempo aqui vista como precursora do empoderamento feminino, da discussão das questões de género ou do combate ao racismo (este um tema abordado numa das sequências mais delirantes). E Maïwenn encarna-a com um carisma, charme e subtileza capazes de convencer até um monarca que já não contava com grandes descobertas no fim da vida.

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Além da dupla protagonista, esta história de triunfo e queda é abrilhantada por secundários de luxo como Melvil Poupaud, em modo calculista e ressentido, ou Benjamin Lavernhe, presença determinante na jornada de Jeanne Du Barry e na vertente mais compassiva de um filme inspirado por "Marie Antoinette", de Sofia Coppola (que fez com que Maïwenn se interessasse pela singular cortesã), mas talvez mais próximo de um filho (bastardo, naturalmente) de "Ilusões Perdidas", de Xavier Giannoli, outro grande drama de época francês recente, e... "Pretty Woman", "clássico" da comédia romântica de Garry Marshall. E ao recorrer ao absurdo com contenção, impõe-se como uma obra mais madura e equilibrada do que a sobrevalorizada "A Favorita", de Yorgos Lanthimos, ou "Corsage", de Marie Kreutzer, outros relatos contemporâneos sobre figuras femininas históricas da realeza estreados nos últimos anos. Aplaudemos Depp, então, mas sobretudo Maïwenn...

4/5