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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Do drama à comédia, do campo à cidade

Não têm faltado boas surpresas na 28.ª edição do QUEER LISBOA, com sessões no Cinema São Jorge e na Cinemateca até dia 28 de Setembro. Os primeiros filmes do francês Antoine Chevrollier e da norte-americana Theda Hammel, ambos da secção competitiva de longas-metragens, são prova disso.

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"LA PAMPA", de Antoine Chevrollier: Primeira longa-metragem de um realizador com um percurso até aqui televisivo (foi um dos criadores da elogiada minissérie "Oussekine"), este drama centrado em dois adolescentes na França rural ainda tem marcas pontuais dessa escola no pequeno ecrã: é por vezes algo episódico e até esquemático ao abordar questões que pediam maior fôlego. Mas também abraça, com sensibilidade e um realismo palpável (Chevrollier filmou nos arredores de Angers, a sua cidade natal, o que terá ajudado), um retrato coming of age vincado por um coming out traumático e a deixar marcas evidentes numa comunidade (ainda) conservadora.

Déjà vu? Algum... Não estará certamente aqui uma das propostas mais transgressoras desta edição do festival. Por outro lado, estes tempos de alguns direitos e liberdades pouco garantidos tornam mais urgente um olhar sobre a masculinidade tóxica, a homofobia e pressões paternais ou de grupo, aqui com a particularidade de se centrar não na figura ostracizada, mas no seu melhor amigo (atravessado por outros dramas numa história que também aborda o luto), e de fazer tangentes ao filme de desporto (os protagonistas têm no motocross um dos elos da sua relação fraternal).

Entre ecos do cinema do conterrâneo André Téchiné (vertente rapazes do interior, de "Os Juncos Silvestres" a "Quando Se Tem 17 anos") e narrativamente próxima do recente "Close", de Lukas Dhont (sendo até mais equilibrado do que este), é uma viagem iniciática muito bem conduzida por um elenco coeso, dos jovens Sayyid El Alami e Amaury Foucher (no seu primeiro papel) a veteranos como Damien Bonnard. A passagem aplaudida por Cannes, de onde saiu este ano com três nomeações (incluindo para a Queer Palm), reforça o embalo de uma estreia promissora.

3/5

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"STRESS POSITIONS", de Theda Hammel: E se a neurose (em tempos) nova-iorquina de Woody Allen se cruzasse com o surrealismo delirante e excêntrico de Gregg Araki? A resposta não estará necessariamente nesta comédia com tanto de ácido como de burlesco, mas esses universos são pistas possíveis para a primeira longa-metragem de uma realizadora que conjuga o cinema com a criação musical (assinando aqui a banda sonora) ou podcasts.

Theda Hammel encarrega-se também do argumento (ao lado do actor Faheem Ali) e da montagem, integrando ainda o elenco deste recuo até Brooklyn em dias confinados, com a pandemia a trazer mais uma camada de ansiedade a um grupo de personagens já de si emocionalmente instáveis. Tudo parte da chegada de um adolescente marroquino à casa do seu tio em Nova Iorque, onde recupera de um acidente ligeiro, e da curiosidade que o novo inquilino desperta junto de alguns amigos do anfitrião.

A estadia é o rastilho para um caos de relacionamentos, ambições, disputas e preconceitos colocados em cheque num filme que não poupa ninguém. Hammel dispara em todas as direcções, não olhando a género, orientação sexual, etnia, religião ou condição social ao desenhar uma farsa tão hilariante como desconfortável.

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Quem procurar uma proposta de diversidade polida e bem-comportada terá outras opções, esta não teme apontar o dedo ao individualismo, narcisismo, voyeurismo, privilégio ou pânico do envelhecimento ancorando-se na comunidade LGBTQIA+. Até porque a autora, artista trans, faz parte dela e parece conhecer muito bem o microcosmos do seu bairro, conferindo às personagens ambiguidade suficiente para não as tornar marionetas da sua tese.

A nível formal, o resultado é mais desafiante do que muitas comédias nova-iorquinas, com as duas narrações em off, aposta arriscada mas certeira, a conferirem uma gravidade inesperada pela justaposição hábil de passado e presente. E embora não seja difícil encontrar pontas soltas neste retrato com cáustico e caótico (nomeado para o grande Prémio do Júri no Festival de Sundance), vale muito a pena descobrir aqui uma nova e muito idiossincrática voz do cinema norte-americano.

3,5/5

A sobrinha perdida (em Istambul?)

Pela estrada fora, entre a Geórgia e a Turquia, uma mulher procura a sobrinha trans num filme que cruza territórios geográficos e emocionais. "CROSSING - A TRAVESSIA", drama de itinerário incerto mas sempre envolvente, é mais um triunfo no caminho auspicioso de Levan Akin.

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Há cinco anos, Levan Akin sobressaiu como uma das vozes mais sonantes de um país do qual ouvimos muito poucas, pelo menos no que diz respeito ao cinema: a Geórgia. Embora sueco, o realizador nascido em Estocolmo há 44 anos tem ascendência da nação em tempos ocupada pela Rússia e a sua realidade não lhe é estranha. Ficou, aliás, documentada na sua terceira longa-metragem, "And Then We Danced" (2019), a tal que cativou olhares fora de portas (até foi o indicado sueco ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro) e teve passagem por Portugal no Queer Lisboa.

Desde então, Akin trabalhou no pequeno ecrã (incluindo na aconselhável série "Interview with the Vampire, exibida por cá no AMC) e regressou este ano ao cinema com um drama que também volta a partir da Geórgia mas tem em vista a Turquia. "CROSSING - A TRAVESSIA", vencedor de um Teddy Award na mais recente edição do Festival de Berlim e que já tinha passado por salas nacionais no IndieLisboa, em Maio, volta a colocar a identidade no centro de um relato realista e compassivo, ancorado em personagens nas quais não é difícil acreditar logo nas primeiras cenas.

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Numa história marcada por vários cruzamentos (de classe, género, orientação sexual ou geografia), um dos iniciais é o que aproxima uma professora reformada de um adolescente que parte com ela rumo a Istambul na tentativa de encontrar sua sobrinha, uma jovem trans rejeitada pela família.

De temperamentos contrastantes - a protagonista é altiva e desconfiada, o rapaz ingénuo e desbocado -, esta dupla improvável traça uma jornada que, não sendo especialmente surpreendente (a lógica que a molda tem ecos de um buddy movie), volta a dar provas da sensibilidade da escrita de Akin (foi o único argumentista do filme), hábil a dosear gravidade e humor, e das suas capacidades como director de actores.

A veterana (ainda que infelizmente pouco vista) Mzia Arabuli e o estreante Lucas Kankava são óptimos a moldar uma cumplicidade crescente, mas nunca dada como garantida, e Deniz Dumanli abre outros horizontes temáticos e narrativos com convicção na pele de uma mulher trans recém-formada em Direito que apoia um centro comunitário LGBTQIA+ turco.

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À medida que a relativa familiaridade do trajecto do duo on the road se cruza com um quotidiano pouco turístico de Istambul, "CROSSING - A TRAVESSIA" vai conferindo singularidade ao seu retrato dos marginalizados, apontando a câmara aos que lidam com a  pobreza, a solidão e a intolerância (homo e transfobia) sem escorregar para a condescendência e o miserabilismo.

Apesar de Akin apontar influências do neorrealismo italiano, há esperança nesta incursão turca, mesmo que não necessariamente um final feliz. Sobretudo quando há espaço para a libertação dos corpos nas noites longas de Istambul, que tanto oferecem melancolia como hipóteses de hedonismo ao virar da esquina. A dança não é tão dominante como no filme anterior, mas ainda é reveladora de facetas menos óbvias de algumas personagens. E o bailado emocional nem precisa de fazer uma pirueta no fim, como "And Then We Danced", para garantir uma das estreias mais bonitas e comoventes da temporada.

3,5/5