Apesar de ser recomendável, o novo álbum dos AUTOMELODI fica aquém dos (óptimos) singles que o antecederam. Mas ao vivo "Mirages au futur verre-brisé" ganha outro fôlego e vertigem, como a banda canadiana deixou evidente na sua passagem por Madrid durante a digressão europeia (infelizmente sem datas em Portugal).
Inicialmente projecto de um homem só, os AUTOMELODI tornaram-se uma dupla quando Xavier Paradis, veterano da cena electrónica de Montreal, convidou o guitarrista Dillon Steele para se juntar ao seu mergulho entre a cold wave, a synth-pop e o pós-punk. A aventura, que arrancou com o disco homónimo, em 2010, mostrou-se igualmente proveitosa no sucessor, "Surlendemains acides" (2013), e não desilude no terceiro longa-duração, o recente "Mirages au futur verre-brisé".
Ainda assim, não é desta que o projecto canadiano oferece um alinhamento imbatível de fio a pavio, já que singles brilhantes como "Toujours de jamais (hors-temps)", "Les Métros Disparus" , "Feux rouges, châteaux brillants" e sobretudo "La Poussière" acabam por não ter sucessão à altura num disco com alguma perda de fôlego na segunda metade - que embora dominada por uma produção inatacável, não conta com canções tão urgentes.
Não que isso comprometa o lugar demarcado que a dupla foi capaz de encontrar na indietronica dos últimos anos. Com uma linguagem que deve tantos aos New Order, The Cure ou Ultravox como aos Indochine, Étienne Daho ou Serge Gainsbourg, os AUTOMELODI desenham um romantismo intrigante e a optar sempre pelo francês como idioma, não temendo cortar em algum charme e elegância quando levam as suas canções para o palco.
O concerto no Maravillas Club, em Madrid, a 18 de Maio, destacou-se por uma sonoridade bem mais ríspida e densa do que a dos discos, a encurtar consideravelmente a distância entre a synth-pop e o noise. Mas a música do duo nunca deixou para trás o embalo rítmico e melódico, com Paradis a oscilar entre o crooner eloquente e acessos de alma punk enquanto Steele apostou numa pose mais circunspecta, quase shoegazer, apenas desfeita quando se atirou a um desvario com ecos EBM ao trocar a guitarra pela percussão num tema.
Os novos singles mantiveram-se tão infecciosos como na versão gravada e outros temas do disco, caso de "Angoisses d'Orléac", soaram mais propulsivos e viscerais. A coesão do alinhamento também saiu reforçada por viagens certeiras aos discos anteriores, do "clássico" "Schema Corporal", talvez ainda a canção mais pegajosa dos AUTOMELODI, a uma "La Cigale" servida numa versão rude e intensa, complementada por uma cacofonia de samples vocais.
"Digresse" também assegurou a força de um concerto sem pontos mortos e praticamente sem pausas - parco em palavras, o duo entregou-se quase por completo à música, e tanto essa postura como parte da sonoridade lembraram as actuações de uns The Soft Moon.
Embora não se tenha dirigido muitas vezes ao público, Paradis ainda saiu do palco em várias ocasiões para dançar freneticamente no meio dele - tal como dançou em palco, muitas vezes munido de uma pandeireta. Até porque nem faltava espaço, tendo em conta que a pequena sala contou com escassas dezenas de espectadores.
De qualquer forma, o acolhimento dos canadianos não deixou de ser vibrante, numa comunhão que só pecou pela brevidade: o catálogo do grupo permitia-lhe ter ido além da duração mínima de uma hora, já incluindo o encore de apenas um tema ("Buanderie jazz", regresso ao álbum de estreia e a um flirt curioso com a jangle pop). Mas foi uma limitação "pas grave", no final das contas, quando o que se viu e ouviu se revelou tão imponente e memorável...
Oito anos depois de "Gravity the Seducer" e 20 (!) após a sua formação, os LADYTRON regressam com um álbum homónimo e mais interessados em consolidar uma personalidade do que em propor grandes viragens. Mas também não precisam de mudar muito quando continuam a oferecer alguma da melhor pop electrónica.
A espera foi longa, e ultrapassou largamente qualquer intervalo entre as edições de álbuns anteriores. Nos tempos apressados de hoje, a distância entre "Gravity the Seducer" (2011) e "LADYTRON" (2019) parece mesmo uma eternidade, sobretudo no calendário pop-rock. Ainda assim, na música do quarteto inicialmente radicado em Liverpool e agora espalhado pelo mundo, pouco parece ter mudado.
Revelados através da synth-pop analógica do muito promissor "604" (2001), com derivação em "Light & Magic" (2002), os LADYTRON ganharam contornos mais agrestes em "Witching Hour" (2005), que continua a ser o seu melhor álbum e aquele que passou a acolher as guitarras entre os ingredientes principais. "Velocifero" (2008) manteve essa atmosfera vertiginosa, tendencialmente distorcida, e parece ser daí que o novo disco partiu - até mais do que seu antecessor imediato, que optava quase sempre por ambientes etéreos.
A banda apresentou "LADYTRON" como um registo mais pesado e urgente do que "Gravity the Seducer" e o alinhamento confirma-o, depois de os primeiros singles também o terem sugerido - uma mudança consolidada pela produção de Jim Abbiss (que já tinha colaborado em "Witching Hour") e pela percussão de Igor Cavalera, ex-baterista dos Sepultura. "There's no law/ There's no God/ There's no harm/ There's no love", entoava Helen Marnie, de forma distante, em "The Animals", canção densa q.b. e a denunciar um pessimismo mantido em "The Island" - "We are savages", garantia aí a vocalista, com a melancolia a temperar um exemplo de pop electrónica orelhuda.
Estes dois avanços nem estão entre o melhor que o disco oferece, mas são representativos do tom que percorre o alinhamento, não só a retomar como a reforçar o lado mais opressivo e encorpado de "Velocifero". Às primeiras audições, "LADYTRON" não parece um álbum tão consistente como esse, e nos primeiros e últimos temas agrada sem impressionar tanto como talvez se esperasse ao fim de oito anos de espera. Mas lá pelo meio encontramos algumas canções ao nível das que ajudaram a fazer do grupo uma referência entre a pop electrónica deste milénio.
"Deadzone" talvez seja a maior pérola da versão de 2019 do quarteto, numa aliança perfeita de ritmo e melodia, da voz inquieta de Helen Marnie e de sintetizadores sombrios, num portento de alma gótica. É mesmo canção a juntar às melhores dos LADYTRON, feito do qual poucas bandas da sua geração poderão orgulhar-se ao sexto álbum. Mira Aroyo, a segunda vocalista, protagoniza outro grande momento na trepidação industrial de "Paper Highways" e faz perguntar porque é que a ouvimos tão poucas vezes desta vez - sobretudo quando "Horrorscope", a outra faixa cantada por ela, é o único escorregão do disco.
O que também se ouve menos do que o habitual no álbum é o cruzamento das duas vozes, dinâmica que estava entre os elementos mais reconhecíveis e aliciantes da música da banda. Marnie dá conta do recado sozinha na maioria das faixas, mas essa falta de contraste tímbrico leva a que alguns momentos talvez fizessem mais sentido nas suas aventuras a solo ("Tomorrow Is Another Day", "Tower of Glass" ou a já referida "The Island" não são más canções, mas também não mostram os LADYTRON mais memoráveis).
Temas como o breve "Run", um dos menos instrumentalmente saturados, ou o explosivo "You've Changed", talvez o episódio mais dançável e imponente, com potencial para ir ainda mais longe ao vivo, mostram o grupo ao seu melhor nível - capaz de expandir a sua linguagem em vez de se limitar a retomá-la.
Canções como essas ou como "Figurine", outro caso de conjugação brilhante entre nervo e sensibilidade pop, lembram que o regresso dos LADYTRON já fazia falta há muito e que ainda não surgiu outra banda capaz de ocupar o seu espaço. E se até valeu a pena ouvir Marnie a solo (no primeiro álbum, pelo menos), Aroyo com os The Projects e John Foxx e The Maths, Daniel Hunt enquanto produtor das novas canções dos Lush ou do arranque dos Tamoios e acompanhar o percurso de fotógrafo de Reuben Wu, estes novos (ou já nem tanto) "fab four" de Liverpool continuam a fazer muito sentido em conjunto.