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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Os fantasmas de Huppert

Isabelle Huppert é protagonista de vários filmes da mais recente edição da FESTA DO CINEMA FRANCÊS, que está de regresso ao Porto, e a sua presença valoriza duas novidades que dificilmente seriam tão intrigantes sem ela - uma faz parte da secção de antestreias, outra destaca-se entre os inéditos deste ano.

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"OS NOVOS VIZINHOS", de André Téchiné: A mais recente obra do realizador de "Os Juncos Silvestres" (1994) podia ter sido um grande filme sobre questões actuais e urgentes, tanto em França como por cá. Da violência policial à fronteira entre activismo e terrorismo, do caldeirão multicultural de uma nova Europa a um contexto político cada vez mais polarizado, há várias pistas nada indiferentes às manchetes do momento lançadas no arranque deste drama urbano.

Mas se Ladj Ly tentou fazer esse filme em "Os Indesejáveis" (em cartaz e também apresentado em antestreia na Festa do Cinema Francês), depois do marcante "Os Miseráveis" (2019), ficando aquém dos objectivos num final desequilibrado, Téchiné nem parece estar tão interessado nisso a certa altura. Ou pelo menos não é esse o ângulo mais memorável e conseguido desta história sobre uma polícia veterana que se aproxima de uma família recém-chegada à vizinhança.

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Mais do que o suspense em torno das ligações dos novos vizinhos ao activismo anti-polícia, o melhor deste retrato é a forma atenta, justa e digna com que Téchiné foca o envelhecimento, a solidão quotidiana e o luto da personagem de Huppert. O modo como a protagonista encara a morte recente do ex-companheiro, também ele polícia, não chega a atirar o filme para domínios do esotérico mas surpreende no que se perfila até aí como um exemplo de realismo bem trabalhado, embora sem grandes sinais de personalidade.

Em vez de um thriller levado até às últimas consequências, fica a crónica humanista feita com modéstia e sobriedade, engrandecida por uma actriz em estado de graça - e pelos também brilhantes Nahuel Pérez Biscayart e Hafsia Herzi, já agora, mesmo que o argumento pudesse oferecer-lhes mais. Daria uma boa sessão dupla com "O Adeus à Noite" (2019), o filme anterior de Téchiné a estrear-se nas salas portuguesas ("Les âmes soeurs", de 2023, ficou de fora), no qual a personagem de Catherine Deneuve se inquietava com o radicalismo político do neto.

3/5

"Os Novos Vizinhos" é exibido esta sexta-feira, 22 de Novembro, às 19h30, no Teatro Rivoli, no Porto.

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"SIDONIE NO JAPÃO", de Élise Girard: Sem estreia comercial prevista por cá, o novo filme da realizadora de "Belleville-Tokyo" (2010) foi um dos bons motivos para espreitar a edição lisboeta da Festa. À partida, parece haver neste drama etéreo e minimalista ecos de "Lost in Translation: O Amor é um Lugar Estranho" (2023): afinal, arranca com a chegada de uma francesa ao Japão, sem conhecer o idioma do país e mantendo apenas uma relação de proximidade com uma pessoa ao longo da estadia. Mas embora Girard não evite os contrastes Ocidente/Oriente nem a lógica do peixe fora de água, à medida que a protagonista tenta adaptar-se à realidade de Kyoto, esta viagem transformadora dificilmente se confundirá com a obra de culto de Sofia Coppola.

"Esta é uma terra de fantasmas, e eles estão entre nós", diz a personagem de Tsuyoshi Ihara à de Isabel Huppert a certa altura. E tal como "Os Novos Vizinhos", "Sidonie no Japão" é um filme de fantasmas, mas sem fazer tangentes ao thriller, muito menos ao terror. O retrato nasce antes a partir de um romantismo onírico, com uma cineasta a esmerar-se na poesia visual (com olho para enquadramentos meticulosos que tiram partido da arquitectura ou da natureza da região) enquanto acompanha a jornada de uma escritora que apresenta a edição japonesa de um bestseller. Pelo caminho, a protagonista ajusta contas com um passado atormentado pela morte do marido, encarnado pelo alemão August Diehl em cenas que parecem rimar com as da mulher polícia e do seu antigo companheiro no filme de Téchiné.

Felizmente, Girard não se leva demasiado a sério e tempera com algum humor uma narrativa que, noutras mãos, talvez ficasse refém de uma carga solene exasperante. E Huppert, com uma conjugação de maturidade e curiosidade, ilumina o ecrã mesmo que o ritmo nem sempre seja o mais convidativo. Pequenos achados, como uma cena sexo particularmente imaginativa, reforçam a singularidade desta bela viagem física e emocional que merecia chegar a mais ecrãs.

3/5

Uma rapariga com potencial

Numa altura em que a FESTA DO CINEMA FRANCÊS se instala no Porto, já a partir de dia 22, louva-se por aqui a aposta em "DIAMANTE BRUTO" na edição lisboeta, no início do mês. Uma das melhores antestreias do evento, o primeiro filme de Agathe Riedinger chegou de Cannes com duas nomeações (incluindo à Palma de Ouro) e vale tanto pela descoberta de uma realizadora como de uma actriz.

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"Vou ser a Kim Kardashian francesa", garante a protagonista desta longa-metragem baseada na curta "J'attends Jupiter" (2018). Adolescente de 19 anos, influencer a despertar atenções no Instagram e no TikTok, Liane é tão ambiciosa como meticulosa na gestão da imagem e essa determinação poderá dar maiores frutos mediáticos depois de um casting para um reality show. Mas se a oportunidade lhe permite ir ganhando o estatuto de estrela local - numa zona empobrecida de Fréjus, no sul de França -, a espera pela confirmação da produtora é o rastilho para uma espiral de insegurança e ansiedade.

Movendo-se na fronteira ténue entre realidade e artifício, "DIAMANTE BRUTO" tem, desde logo, o mérito de nunca olhar de cima para a sua protagonista nem para o meio que a envolve. O retrato de um quotidiano precário, marcado por horizontes limitados e metas questionáveis, seria facilmente ridicularizado noutras mãos, mas a realizadora está sempre com Liane, nunca a julgando mas também não a apresentando como uma figura dócil para o espectador. Neste estudo de personagem vertiginoso tanto cabe a obsessão, o narcisismo e a insolência como uma vulnerabilidade comovente e até inesperada à primeira vista.

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Apresentando uma segurança e desenvoltura invulgares numa primeira longa, Riedinger desenha um relato coming of age numa moldura de realismo social traçado com rasgo e urgência. A câmara à mão e a fotografia saturada não serão opções originais neste registo, mas são agarradas com "savoir faire" num drama que acompanha a procura de beleza e da fama a todo o custo - sugestões de "body horror" incluídas - sem cair no conto moral(ista) pronto a consumir e descartar.

O papel da religião numa rotina guiada por padrões estéticos exacerbados e a banda sonora entre o melancólico e o sinuoso (cortesia do violoncelo de Audrey Ismaël) ajudam a conferir uma gravidade crescente a uma obra que vai afirmando o seu espaço, apesar das muitas referências próximas. O filme tem suscitado comparações a "Rosetta", dos irmãos Dardenne, pela forma crua como segue uma adolescente, embora esta história de crescimento no feminino, com experiências de solidão e abandono, também lembre os mais recentes "The Florida Project", de Sean Baker, ou "How to Have Sex", de Molly Manning. O universo de Céline Sciamma, conterrânea que se tem debruçado sobre vidas de jovens mulheres à margem ("Naissance des pieuvres", "Retrato de uma Rapariga em Chamas"), é outra aproximação possível.

Além de revelar uma realizadora, "DIAMANTE BRUTO" vale pela descoberta de uma actriz, a estreante Malou Khebiz, presença fundamental para que Liane se imponha como uma das grandes personagens da Festa do Cinema Francês deste ano. Misto de inocência e voracidade, é o maior exemplo de uma direcção de actores apurada, mesmo que alguns secundários fiquem por explorar - uma das poucas limitações desta reunião de talento em bruto.

4/5