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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Festejemos a nova selecção italiana

Quase a despedir-se de Lisboa e prestes a chegar a Aveiro, Funchal ou Braga, a 18.ª edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tem, entre muitos outros destaques, cinco filmes em competição. "DICIANNOVE" e "FAMILIA" são dos mais estimulantes dessa mostra de novos realizadores.

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"DICIANNOVE", de Giovanni Tortorici: Primeira obra de um realizador que foi assistente de realização de Luca Guadagnino na brilhante série "We Are Who We Are" (HBO/Sky Atlantic), este drama inventivo e idiossincrático conta com o cineasta de "Chama-me Pelo Teu Nome" e "Challengers" entre os produtores e também se debruça nas questões sempre férteis da entrada na idade adulta.

Parcialmente autobiográfico, deixa um retrato da solidão, acompanhada de alguma repressão e alienação, de um estudante de literatura numa jornada emocional e geográfica (entre Palermo, terra natal de Tortorici, Londres, Siena e Turim). Mas apesar de reconhecer as dificuldades do crescimento, este retrato aplaudido no Festival de Veneza (e nomeado em duas categorias) não se leva demasiado a sério, condimentando as viagens com um olhar escarninho e irónico.

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Boa parte do sentido de humor deriva logo de pormenores deliciosos da montagem, com o recurso a zooms e cortes abruptos a sublinhar o saudável experimentalismo formal de um filme que dificilmente se confunde com outros testemunhos do adeus à adolescência. Mesmo que algumas particularidades nem sempre o favoreçam: "DICIANNOVE" é por vezes demasiado episódico, com uma colagem de vinhetas de inspiração variável e uma certa auto-indulgência, à medida de um protagonista insolente e pedante.

Manfredi Marini, numa estreia muito promissora na representação, aguenta bem o olhar obsessivo da câmara (que não prescinde dele em nenhuma cena), com uma presença que chega a lembrar o Xavier Dolan actor ao longo de um filme que também parece ter ecos do Xavir Dolan realizador - e que por isso se arrisca a despertar reacções tão extremadas como muitos filmes desse "enfant terrible" canadiano. Mas será difícil não reconhecer aqui talento...

3/5

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"FAMILIA", de Francesco Costabile: O realizador de "Una femmina" (que passou pela Festa do Cinema Italiano há três anos) afirma-se como um nome a seguir nesta adaptação de "Non sarà sempre così" (2017), livro autobiográfico de Luigi Celeste.

Mergulho intenso nos ciclos de violência que questiona a possibilidade de redenção, é a história de uma família na qual o realismo social aceita contaminações do thriller e faz tangentes ao terror, códigos que marcam um quotidiano de abuso físico e psicológico por parte da figura paterna.

Algures entre o recente "Brincar com o Fogo", drama de Delphine e Muriel Coulin no qual a personagem de Vincent Lindon se debate com um filho seduzido pelo fascismo, e o mais distante "Custódia Partilhada", de Xavier Legrand, também atravessado por um caso de violência doméstica levado ao extremo, "FAMILIA" evita demonizações fáceis enquanto demora o seu tempo a revelar o foco narrativo.

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O protagonista acaba por ser um dos filhos, interpretado na idade adulta por Francesco Gheghi (Prémio de Melhor Actor no Festival de Veneza), tremendo na pele de uma figura ambígua e com um conflito interior que o filme nunca simplifica. Mas é pena que as personagens da sua mãe e irmão acabem menos exploradas do que o arranque sugeria, com o argumento a privilegiar o pai, a cargo do veterano Francesco Di Leva (outra interpretação fortíssima entre um elenco todo merecedor de aplausos).

O desenlace também não estará à altura de outros momentos, embora a carga visceral e urgente desses seja tão bem captada por Costabile que "FAMILIA" nunca deixa de ser uma experiência tão memorável como recomendável - e das melhores descobertas desta edição da Festa, a pedir estreia em sala.

3,5/5

Os fantasmas de Huppert

Isabelle Huppert é protagonista de vários filmes da mais recente edição da FESTA DO CINEMA FRANCÊS, que está de regresso ao Porto, e a sua presença valoriza duas novidades que dificilmente seriam tão intrigantes sem ela - uma faz parte da secção de antestreias, outra destaca-se entre os inéditos deste ano.

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"OS NOVOS VIZINHOS", de André Téchiné: A mais recente obra do realizador de "Os Juncos Silvestres" (1994) podia ter sido um grande filme sobre questões actuais e urgentes, tanto em França como por cá. Da violência policial à fronteira entre activismo e terrorismo, do caldeirão multicultural de uma nova Europa a um contexto político cada vez mais polarizado, há várias pistas nada indiferentes às manchetes do momento lançadas no arranque deste drama urbano.

Mas se Ladj Ly tentou fazer esse filme em "Os Indesejáveis" (em cartaz e também apresentado em antestreia na Festa do Cinema Francês), depois do marcante "Os Miseráveis" (2019), ficando aquém dos objectivos num final desequilibrado, Téchiné nem parece estar tão interessado nisso a certa altura. Ou pelo menos não é esse o ângulo mais memorável e conseguido desta história sobre uma polícia veterana que se aproxima de uma família recém-chegada à vizinhança.

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Mais do que o suspense em torno das ligações dos novos vizinhos ao activismo anti-polícia, o melhor deste retrato é a forma atenta, justa e digna com que Téchiné foca o envelhecimento, a solidão quotidiana e o luto da personagem de Huppert. O modo como a protagonista encara a morte recente do ex-companheiro, também ele polícia, não chega a atirar o filme para domínios do esotérico mas surpreende no que se perfila até aí como um exemplo de realismo bem trabalhado, embora sem grandes sinais de personalidade.

Em vez de um thriller levado até às últimas consequências, fica a crónica humanista feita com modéstia e sobriedade, engrandecida por uma actriz em estado de graça - e pelos também brilhantes Nahuel Pérez Biscayart e Hafsia Herzi, já agora, mesmo que o argumento pudesse oferecer-lhes mais. Daria uma boa sessão dupla com "O Adeus à Noite" (2019), o filme anterior de Téchiné a estrear-se nas salas portuguesas ("Les âmes soeurs", de 2023, ficou de fora), no qual a personagem de Catherine Deneuve se inquietava com o radicalismo político do neto.

3/5

"Os Novos Vizinhos" é exibido esta sexta-feira, 22 de Novembro, às 19h30, no Teatro Rivoli, no Porto.

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"SIDONIE NO JAPÃO", de Élise Girard: Sem estreia comercial prevista por cá, o novo filme da realizadora de "Belleville-Tokyo" (2010) foi um dos bons motivos para espreitar a edição lisboeta da Festa. À partida, parece haver neste drama etéreo e minimalista ecos de "Lost in Translation: O Amor é um Lugar Estranho" (2023): afinal, arranca com a chegada de uma francesa ao Japão, sem conhecer o idioma do país e mantendo apenas uma relação de proximidade com uma pessoa ao longo da estadia. Mas embora Girard não evite os contrastes Ocidente/Oriente nem a lógica do peixe fora de água, à medida que a protagonista tenta adaptar-se à realidade de Kyoto, esta viagem transformadora dificilmente se confundirá com a obra de culto de Sofia Coppola.

"Esta é uma terra de fantasmas, e eles estão entre nós", diz a personagem de Tsuyoshi Ihara à de Isabel Huppert a certa altura. E tal como "Os Novos Vizinhos", "Sidonie no Japão" é um filme de fantasmas, mas sem fazer tangentes ao thriller, muito menos ao terror. O retrato nasce antes a partir de um romantismo onírico, com uma cineasta a esmerar-se na poesia visual (com olho para enquadramentos meticulosos que tiram partido da arquitectura ou da natureza da região) enquanto acompanha a jornada de uma escritora que apresenta a edição japonesa de um bestseller. Pelo caminho, a protagonista ajusta contas com um passado atormentado pela morte do marido, encarnado pelo alemão August Diehl em cenas que parecem rimar com as da mulher polícia e do seu antigo companheiro no filme de Téchiné.

Felizmente, Girard não se leva demasiado a sério e tempera com algum humor uma narrativa que, noutras mãos, talvez ficasse refém de uma carga solene exasperante. E Huppert, com uma conjugação de maturidade e curiosidade, ilumina o ecrã mesmo que o ritmo nem sempre seja o mais convidativo. Pequenos achados, como uma cena sexo particularmente imaginativa, reforçam a singularidade desta bela viagem física e emocional que merecia chegar a mais ecrãs.

3/5