De 22 a 30 de Setembro, o QUEER LISBOA 27 instala-se no Cinema São Jorge e na Cinemateca com uma selecção de 80 filmes. Para já, ficam por aqui cinco sugestões.
Longas, Curtas, Documentários, Panorama, "In My Shorts" e Queer Art são secções já habituais e retomadas na 27.ª edição do Festival Internacional de Cinema Queer de Lisboa, a par de uma retrospectiva (dedicada à coreógrafa e realizadora norte-americana Yvonne Rainer) ou de sessões especiais, conversas, debates e festas.
Com mais de uma semana de propostas ao longo de tardes e noites, a quantidade, ao contrário da diversidade, pode intimidar à primeira vista, mas os cinco filmes abaixo parecem estar entre as apostas mais certeiras (e são quase todos de uma secção competitiva de longas-metragens especialmente aliciante).
"O ACIDENTE", de Bruno Carboni: Primeira longa-metragem de um realizador com três curtas no currículo, este drama brasileiro arranca com o acidente mencionado no título - entre uma ciclista e um automobilista -, que vai deixando um impacto inesperado na vida dos envolvidos: inicialmente quando a vítima decide não o mencionar à companheira (que acaba por saber dele pelas redes sociais), depois quando se aproxima da família de quem a atropelou. Elogiado pelo tom atmosférico e pelos dilemas morais que coloca em jogo, teve o argumento premiado no Festival de Pequim.
Sábado, 23 de Setembro, às 16h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"PORNOMELANCOLÍA", de Manuel Abramovich: Retrato do quotidiano de um influenciador sexual distinguido no festival de San Sebastián, esta combinação de documentário e ficção volta a partir, como outras obras do realizador argentino, da história de figuras reais. Desta vez o olhar recai sobre o mexicano Lalo Santos, numa altura em que faz audições para um filme pornográfico, lida com um cenário familiar algo conturbado e mantém uma rotina mais solitária do que a popular presença nas redes sociais poderia sugerir. Quem procurar provocação, humor e subversão pode seguir por aqui.
Sábado, 23 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"BLUE JEAN", de Georgia Oakley: É dos filmes mais premiados desta edição, e entre as mais de duas dezenas de nomeações conta com um BAFTA. Primeira longa-metragem de uma realizadora e argumentista cujas curtas já tinham gerado entusiasmo, retoma a tradição do realismo britânico ao ambientar-se na Inglaterra de finais dos anos 80, seguindo uma professora de educação física de Newcastle que mantém secreta a sua orientação sexual - pelo menos até ao dia em que a chegada de uma nova aluna pode determinar o fim de uma vida dupla.
Quarta, 27 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"OPPONENT", de Milad Alami: O iraniano Payman Maadi, conhecido (e memorável) por "Uma Separação" ou "A Lei de Teerão", protagoniza este drama familiar sobre uma família sua conterrânea obrigada a fugir do seu país-natal. A promessa de uma nova vida começa a esboçar-se na Suécia, mas a adesão do patriarca a uma equipa de wrestling local desencadeia uma série de acontecimentos que podem deitar tudo a perder. Segunda longa-metragem do realizador sueco (nascido no Irão), chega com vários elogios e nomeações do Festival de Berlim, entre outros.
Quinta, 28 de Setembro, às 19h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"PASSAGES", de Ira Sachs: O novo filme do autor de "Homenzinhos" (2016) e "Love Is Strange - O Amor é uma Coisa Estranha" (2014) tem direito a sessão especial. E além do nome do realizador, esta história de um triângulo amoroso desperta logo outro interesse pelo elenco, que junta Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos nos papéis principais. Ambientado no mundo artístico e boémio de Paris, acompanha um cineasta que abandona o companheiro depois de se envolver com uma mulher, desenhando um relato acolhido com mais aplausos do que "Frankie" (2019), o filme anterior (e morno) do norte-americano. No Festival de Berlim, contou este ano com duas nomeações (prémio do público e Teddy).
Sexta, 29 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
Duas das melhores apostas da mais recente edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tiveram direito a estreia no circuito comercial. Uma já passou pelas salas, outra está entre as novidades da semana a ter em conta.
"L'IMMENSITÀ - POR AMOR", de Emanuele Crialese: Valeu a pena esperar mais de dez anos por um novo filme do realizador de "Respiro" (2002), que não dava notícias desde "Terraferma" (2011) - tirando uma breve passagem pela televisão em 2018.
Viagem ao quotidiano disfuncional de uma família da classe média na Roma de finais dos anos 1970, é um regresso desde logo elevado por uma luminosa Penélope Cruz, óptima na pele de uma dona de casa e mãe de três filhos que tem de lidar com o pior da misoginia e das imposições sociais, culturais e religiosas que não a deixam sair de um casamento arruinado.
Mas o olhar de Crialese detém-se mais na filha mais velha, que questiona a sua identidade de género num ambiente em que temas trans estavam longe de ser acolhidos e muito menos compreendidos. A mãe, no entanto, faz o que pode, e dos momentos de cumplicidade que balizam essa relação nasce o melhor de um (melo)drama dividido entre a crise conjugal e uma narrativa coming of age de contornos queer.
A jovem estreante Luana Giuliani é tão intensa e credível como Cruz enquanto figura com desejos de evasão numa realidade (hetero)normativa e claustrofóbica, mas felizmente Crialese não faz do dia a dia de ambas uma via sacra: o escapismo chega através de sequências musicais oníricas (talvez até demasiadas) e de uma possibilidade amorosa para a adolescente, além da dinâmica habitualmente festiva entre mãe e filhos (a direcção de actores exímia estende-se às crianças do elenco).
O realizador, que assumiu ser um homem trans na altura da estreia do filme em Itália, no ano passado, revelou que esta é uma história parcialmente autobiográfica e talvez por isso seja tão verosímil e envolvente. Crialese tem sensibilidade quanto às muitas inquietações que vai percorrendo e só é pena que a personagem do pai desta família seja a menos tridimensional. Não por culpa do actor, Vincenzo Amato, mas por este patriarca não ter direito a grandes nuances entre a tirania e machismo que o argumento vai denunciando - naquela que é, de longe, a sua vertente menos subtil.
Passando ao lado dessa limitação e de um desenlace que fica aquém do rasgo de muitas sequências anteriores (como as de uma tarde recreativa que acaba mal ou de um jantar de gala asfixiante), "L'IMMENSITÀ - POR AMOR" volta a dar bons motivos para acompanhar Crialese, sobretudo quando "Terraferma" não tinha oferecido assim tantos. E ganha já lugar entre os filmes mais bonitos e comoventes de 2023, depois de ter inaugurado a mais recente edição da Festa do Cinema Italiano e de ter sido nomeado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza...
3,5/5
"VELAS ESCARLATES", de Pietro Marcello: O autor de "Martin Eden" (2019) confirma-se como um dos nomes mais idiossincráticos do cinema italiano dos últimos anos, mesmo que o seu novo filme esteja longe de ser um caso de consenso (ou talvez também por isso).
Adaptação livre do romance homónimo do russo Aleksandr Grin, editado em 1923, este drama de época é um cruzamento tão inusitado como imersivo de um realismo árido, a vincar sobretudo as sequências iniciais, com um tom de fábula e acessos musicais, às vezes até absurdos, à medida que este retrato familiar vai avançando décadas.
Ambientado numa pequena localidade do norte de França no pós-I Guerra Mundial, a primeira obra de Marcello falada em francês arranca como estudo de personagem de um combatente taciturno e solitário (Raphaël Thiery, perfeito como gigante gentil) cujo regresso a casa o torna estranho numa terra estranha, e mostra ao quem vem quando vai virando o foco para a sua filha, da nascença aos primeiros anos da idade adulta (papel bem entregue a três jovens actrizes: Asia Bréchat, Sienna Gillibert e Juliette Joan).
Entre a crueza e o lirismo, o romanesco e heranças do folclore local, o realizador junta ainda imagens documentais, como já acontecia no filme pelo qual mais se notabilizou, cruzadas com a fotografia granulada, em 16mm, de Marco Graziaplena, a contribuir para a carga sensorial assinalável.
Se esteticamente o italiano esculpe alguns planos de antologia (dos rostos dos actores a cenas à beira-rio banhadas pelo sol), tão deslumbrantes como as criações do antigo soldado tornado artesão de brinquedos, o entusiasmo despertado pelo argumento é mais variável: a história do pai, e da dureza da vida no campo na qual é visto como pária pela comunidade, é mais conseguida do que a da filha, vincada pelo travo feminista e por um romance que surge de forma arbitrária (com um aviador a cargo Louis Garrel, tão estouvado como sempre, que quase cai aqui de pára-quedas).
Parece faltar um terceiro acto que dê outro peso dramático a uma narrativa deliberadamente fragmentada, à qual não falta liberdade e personalidade, é certo, mas que não sai muito favorecida por um final tão repentino. Por outro lado, quem procurar um filme imprevisível e desafiante, de uma voz sem grandes paralelos recentes, tem aqui a escolha em cartaz a não perder.