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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Um filme com vista para o bairro

Segunda longa-metragem de Basil da Cunha, "O FIM DO MUNDO" é um novo olhar sobre uma Reboleira pouco filmada, além de um passo em frente do realizador luso-suíço - e um dos melhores filmes nacionais dos últimos tempos.

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"O mundo fica, nós é que vamos", dizia alguém na primeira conversa de "Nuvem Negra" (2011), uma das muitas curtas de Basil da Cunha que elegeram as ruas e lares de uma certa Amadora como cenário. Mas já aí o mundo de um bairro como o da Estrada Militar, geralmente afastado dos holofotes (incluindo os da ficção, cinematográfica ou outra), estava à beira da derrocada ou da demolição, como o confirmavam as retroescavadoras que transformavam casas em ruínas em algumas das cenas mais fortes do filme.

Quase dez anos depois, a ameaça repete-se numa longa-metragem que parece derivar de parte dessas ideias, não só as da transformação (sub)urbana em curso, que é também a obrigatória transformação de uma comunidade maioritariamente cabo-verdiana, mas pelo entrosamento de ficção e documentário, aliás presente noutras obras do cineasta.

O que também se mantém intacto é o recurso a actores não profissionais, que tem sido habitual em quase toda a filmografia do luso-suíço que reside na Reboleira há mais de uma década (o casting de José Pedro Gomes, protagonista da curta "Os Vivos Também Choram", de 2012, é das excepções que confirmam a regra). Basil da Cunha tem dito em entrevistas que já não os considera amadores, até por já trabalhar com alguns há anos, e isso talvez explique a consistência do elenco de "O FIM DO MUNDO", decisiva para que o realismo deste drama (coming of age, familiar, comunitário) nunca seja colocado em causa - mesmo quando o realizador deixa alusões surreais e místicas ou joga com os códigos do thriller ou do buddy movie.

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Este mundo é o de Spira, rapaz de 18 anos cuja jornada dá mote ao filme, num regresso que será para muitos espectadores a iniciação neste território. O protagonista, saído de um reformatório ao fim de oito anos, volta a casa para se deparar com um dia a dia sem rumo à vista, entre as promessas de sucesso fácil da delinquência (encorajada pelos amigos), uma situação familiar precária (um pai ausente, uma madrasta que tem de dividir a atenção com irmãos mais novos) e a morte anunciada de um bairro, pelo menos aquele que julgava conhecer (as retroescavadoras já são parte da nova mobília).

É um cenário pouco auspicioso, mas Basil da Cunha não o pinta com filtros miserabilistas ou panfletários, tentadores noutras ficções com premissas comparáveis, optando por olhar as personagens cara a cara (às vezes literalmente, como num final a funcionar como requiem e a lembrar mais uma vez a atenção aos rostos de "Nuvem Negra"). E por isso Spira está longe de ser uma figura idealizada e pronta a despertar a empatia do espectador, qualidade que se mantém numa galeria de secundários que revela mais um retrato justo e ambíguo dos marginalizados - todos com as suas razões.

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"Até Ver a Luz" (2013) já tinha mostrado que o realizador sabe desenhar uma atmosfera hipnótica e intrigante, sobretudo nas cenas nocturnas, e "O FIM DO MUNDO" não só a aprimora (a fotografia de Rui Xavier ajuda) como beneficia de um argumento mais consistente do que essa longa-metragem, com outra força dramática e um olhar comunitário mais vasto. E se a primeira metade do filme leva o seu tempo a indicar para onde pretende ir, a segunda confirma uma voz que sabe o que e como dizer (com direito a uma sequência brilhante perto do final, que conjuga três situações ao som de "Pinta Mata", do cabo-verdiano António Sanches, canção epifânica que parece ter sido feita para uma noite caótica na Reboleira).

Depois de ter estado em competição no Festival de Locarno, na Suíça, e de ter vencido os prémios de Melhor Longa-Metragem Portuguesa e Árvore da Vida no IndieLisboa, este ano, "O FIM DO MUNDO" junta-se agora à lista de estreias dos últimos meses a não perder - e também merece figurar na de melhores filmes nacionais dos últimos anos, embora seja uma co-produção luso-suíça.

3,5/5

Rir ainda pode ser o melhor remédio

Duas comédias recentes estão entre os melhores motivos para ir ao cinema na rentrée. Uma abriu o IndieLisboa, outra marca o regresso de um nome associado ao humor, ambas seguem protagonistas que insistem em não crescer.

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"LA FEMME DE MON FRÈRE", de Monia Chokri: Escolha algo inesperada para a sessão de abertura da mais recente edição do IndieLisboa, é a estreia nas longas-metragens de uma realizadora que começou por se fazer notar como actriz em filmes de Xavier Dolan. E se a canadiana parece aceitar aqui algumas influências do conterrâneo (ambiente hipster, histrionismo e disfuncionalidade q.b., profusão de diálogos, dramas de jovens adultos), também mantém um equilíbrio e ritmo do qual boa parte da obra do autor de "Mamã" e "Tom na Quinta" não se poderá orgulhar.

Retrato de uma trintona recém-doutorada, sem emprego à vista nem ligações emocionais fortes além da que tem com irmão, é um mergulho na adolescência tardia com desenvoltura e graça (às vezes, muita), deixando um testemunho pessoal com eco geracional. Chokri acabará por reconhecer que os problemas que tanto afligem a protagonista (encarnada por Anne-Élisabeth Bossé, óptima numa personagem neurótica e auto-centrada) são de primeiro mundo, mas isso não belisca o carisma desta jornada sobre a conquista da independência (a vários níveis), mesmo que seja tirada a ferros.

Além de vários disparos de ironia afiada, quase sempre com sentido de timing, esta é uma comédia dramática que convence por uma ousadia formal assinalável, da fotografia à montagem, passando pela direcção artística e banda sonora (e também aí lembra ocasionalmente o universo do colega Dolan, embora não seja tão ostensiva). Tudo boas razões para não a deixar escapar na segunda sessão do filme, esta quinta-feira, 3 de Setembro, às 21h30, no Grande Auditório da Culturgest.

3,5/5

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"O REI DE STATEN ISLAND", de Judd Apatow: O embate com a maturidade sempre foi um tema caro ao realizador de "Um Azar do Caraças" ou "Aguenta-te aos 40!", mas já começava a dar sinais de esgotamento com "Descarrilada", de longe o seu filme menos memorável. A sua nova comédia, no entanto, sugere que o hiato cinematográfico de cinco anos lhe fez bem (dedicou-se à televisão nesse tempo), ao resultar numa suas das suas obras mais conseguidas - talvez até a melhor, ao lado da algo esquecida "Funny People".

Nem tudo funciona: como sempre, a pontaria do humor é muito desigual, as mais de duas horas de duração revelam-se excessivas para o que Apatow tem para contar e não há aqui grandes ideias de cinema (a realização do norte-americano sempre pareceu mais direccionada para o pequeno ecrã, embora também aí não faltem séries com uma linguagem muito mais inventiva). Por outro lado, este é um filme empático como poucos da colheita veraneante de Hollywood, nascido de uma sintonia envolvente entre argumento e direcção de actores, com destaque obrigatório para Pete Davidson.

Recrutado do "Saturday Night Live", o comediante também colaborou na escrita (ao lado de Apatow e Dave Sirus) e a sua história de vida reflecte-se na do protagonista, um aspirante a tatuador que se agarra à mãe enquanto lida com o luto do pai - papel que o actor agarra com ambiguidade e magnetismo, sem mendigar a simpatia do espectador. A procura do seu lugar no mundo inspira um relato coming of age que não tenta mudar paradigmas mas que acerta nos detalhes, do quotidiano imutável (ou talvez não tanto) de Staten Island a uma galeria de personagens bem desenhadas (quase sempre o grande trunfo do realizador, aliás). As de Marisa Tomei ou Bill Burr compensam a caricatura do grupo de amigos stoner; Steve Buscemi e Pamela Adlon, com participações mais breves, ajudam a reforçar a personalidade e humanidade de uma comédia mainstream que foge à produção de linha de montagem. 2020 já pedia um feel-good movie assim...

3/5