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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

África dele (e de quem procurar uma saga revigorante)

Inspirando-se nos mitos e folclore africanos, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" apresenta um arrojado mundo novo que alguns comparam aos de Tolkien ou George R. R. Martin. Mas este é um universo de fantasia à parte, e particularmente visceral, com o qual o jamaicano Marlon James inaugura em alta uma trilogia literária.

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"A criança está morta. Não há mais nada para saber. Ouço dizer que no Sul há uma rainha que mata quem lhe traz más notícias. Por isso, quando a informo da morte do rapaz, estarei a assinar a minha sentença de morte?"

Começa assim a odisseia do Batedor, personagem principal e narrador da primeira parte da Trilogia Estrela Negra, a mais recente aventura literária de Marlon James, editada em 2019. O autor não se coíbe de oferecer de bandeja o desenlace da jornada que está no centro do enredo, o que noutros livros poderia frustrar as expectativas do leitor. Mas se há casos em que o que conta não é tanto o destino mas a viagem, este é certamente um deles.

Narrada por um mercenário que não será um guia especialmente confiável, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" tem raízes na tradição oral africana pré-colonial e cruza mitos desse continente com códigos (devidamente subvertidos) de sagas fantásticas, levando a obra do escritor radicado nos EUA para os da literatura de género depois de romances aclamados como "Breve História de Sete Assassinatos" de 2016 (vencedor do Man Booker Prize e do American Book Award, foi o primeiro livro do autor editado em Portugal).

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Se nesse antecessor James se debruçava sobre a morte de Bob Marley, desta vez volta a centrar-se na experiência da comunidade negra ao recuar milénios para mergulhar em questões com ressonância no presente. Apesar de não faltarem criaturas extraordinárias (aventureiros transmorfos, feiticeiros, gigantes, vampiros, demónios, macacos canibais ou um búfalo tão teimoso como perspicaz), o entusiasmo pelo fantástico surge associado a um olhar sobre o poder, a família, a sexualidade ou a religião, com farpas bem apontadas à misoginia ou à homofobia. Não é uma conjugação inesperada num escritor que diz ter-se inspirado em nomes como Salman Rushdie para uma escrita simultaneamente pessoal e política. O autor de "Versículos Satânicos" está, aliás, entre os admiradores de "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" e também entre os que o comparam aos universos de Tolkien, de George R. R. Martin e até da Marvel, via "Black Panther".

Até certo ponto, as comparações percebem-se: o nível de detalhe na construção e apresentação deste universo não fica aquém do de "O Senhor dos Anéis" (nem sequer faltam mapas para ilustrar o itinerário), as doses de crueza e violência talvez até superem as de "A Guerra dos Tronos" - James não tem medo de ser excessivo, ou mesmo escatológico, ao sugerir ou relatar episódios de agressões, torturas, mutilações, violações, assassinatos, violações, escravidão ou canibalismo.

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Imagem não oficial criada pela artista gráfica e ilustradora Jemina Malkki

A visão do jamaicano, no entanto, é bem menos maniqueísta do que a dessas sagas, embora Martin já recusasse um mundo a preto e branco. Aqui não há heróis impolutos, desde logo porque o leitor é conduzido por um narrador e protagonista cáustico, o que até poderá limitar a sua empatia nas largas primeiras páginas - o livro tem mais de 600 na edição portuguesa.

Mas aos poucos, as razões do Batedor, um mercenário céptico e solitário de olfacto apurado, vão sendo esgravatadas à medida que a sua muralha emocional dá algumas tréguas. Apesar da sordidez que marca a luta entre reinos (o do norte e o do sul) e a perseguição desenfreada a uma criança desaparecida que pode ser o herdeiro legítimo, esta também é uma história de amor. E de amor (e sexo) entre homens negros, o que não é um pormenor vinda de um escritor homossexual que abandonou a Jamaica porque podia ser morto por isso - um caso em que o pessoal é inseparável do político, lá está, e a dar conta que a brutalidade real ultrapassa a de muita ficção.

Ao longo de um desdobramento narrativo labiríntico, com dezenas de portas mágicas, uma cidade horizontal e alada ou um ataque de hienas gráfico e traumático, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" triunfa tanto nesses exemplos de imaginação fervilhante como quando explora as ideias de pertença, diferença, identidade, verdade ou propósito a partir das experiências do protagonista. E é por isso que o relato do Batedor vai do suspense ao delírio, do inesperadamente caloroso à angústia da recta final, mérito de um escritor que se distingue nas descrições vívidas e nos diálogos afiados (que não abdicam do humor entre a selvajaria).

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As figuras que se cruzam no percurso do mercenário são outro ponto forte, do Leopardo com quem partilha o título do livro (capaz de se transformar em homem ou felino) a Mossi (talvez a personagem mais nobre, uma das âncoras emocionais da saga), passando por um grupo de crianças orfãs com capacidades especiais (qualquer aproximação aos X-Men não será pura coincidência, já que James acompanha a BD dos super-heróis mutantes da Marvel) e toda a galeria de antagonistas. Infelizmente para elas (e em alguns casos, para o leitor), nem todas chegam ao fim do livro para contar a história, ao contrário do protagonista (não é um spoiler, James é o primeiro a colocar as cartas na mesa).

Ainda assim, esta história vai voltar a ser contada: os dois volumes seguintes da trilogia prometem revisitar os acontecimentos pela voz de outros narradores, resultado da influência da série "The Affair", do Showtime, que também apostou nesse dispositivo narrativo (herdado do clássico "Rashomon", de Akira Kurosawa). Antes disso, talvez seja a vez de "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" chegar ao pequeno ecrã, tendo em conta que Michael B. Jordan já comprou os direitos televisivos. Por agora, ficam as imagens mentais que vão surgindo a cada virar de página deste épico brilhante e altamente imersivo.

4,5/5

 

Na feira ao cair da noite

Comprar ou não comprar? Mesmo com preços convidativos (ou talvez precisamente por causa deles), o dilema de uma visita à FEIRA DO LIVRO DE LISBOA não costuma demorar muito a instalar-se. E nem está em causa o interesse de muitas propostas que vou encontrando pelas bancas, antes o tempo que, passado o acto (e entusiasmo) da compra, consigo dedicar-lhes nos dias, meses ou anos seguintes, conforme os casos. Já a contar com isso, e a olhar para mais uma pilha em lista de espera nas estantes lá de casa, desta vez obriguei-me a ficar-me pelos mínimos e a ler pelo menos uma das compras anteriores até ao fim da edição deste ano, este domingo. E não correu mal.

 

aocairdanoite

 

Apesar de ter gostado de "Uma Casa no Fim do Mundo" (1990) e ainda mais de "Sangue do Meu Sangue" (1995), "Dias Exemplares" (2005) fez-me deixar Michael Cunningham de lado durante uns tempos - não cheguei a passar pelo mais celebrado "As Horas" (1998), talvez não devesse ter começado pelo filme. Mas escusava de ter deixado "AO CAIR DA NOITE" (2010) arrumado desde há umas quantas feiras do livro. Não tem o factor surpresa nem a ambição dos títulos mais antigos do norte-americano, uma vez que o território (narrativo, temático e emocional) já é familiar, embora isso seja bom (bastante, até) depois da estrutura tripartida e dos ambientes de ficção científica do livro anterior.

 

Se algumas das suas obras foram adaptadas para cinema, Cunningham admitiu que este romance seria menos apetecível para o grande ecrã e ao lê-lo percebe-se porquê. A história de um negociante de uma galeria de arte na casa dos quarenta e da sua relação com o cunhado, irmão mais novo da sua mulher à procura de um rumo além das drogas, não é propriamente rica em acontecimentos e menos ainda em grandes reviravoltas ou tramas secundárias. O que interessa aqui é o universo interior do protagonista, que o autor consegue explorar sem cair nos clichés de crises de meia-idade, do marasmo e ressentimentos conjugais, do questionamento da orientação sexual (mesmo numa idade já muito além da adolescência) ou do papel da arte, elementos fortes de um retrato profundo sem ser sisudo nem exaustivo, mérito de uma escrita ágil, limpa e capaz de encontrar humor entre o caos existencial.

 

Acessos de micro raiva entre marido e mulher, uma descrição original de uma viagem de táxi em Nova Iorque (que poderia aplicar-se a uma metrópole europeia, embora a cidade não seja mero cenário da acção) ou um apontamento tão implacável como realista do peso dos silêncios em (re)encontros ficam entre muitos momentos a sublinhar por aqui. E também como mais uma prova da capacidade de Cunningham para medir o pulso das relações humanas contemporâneas, através de alguns dos seus temas de eleição (amor, desejo, morte, família), que chegarão a mais gente do que as muitas alusões a autores e obras da literatura e da pintura - felizmente, o namedrop, às vezes excessivo, está longe de ser determinante para o balanço (bem satisfatório) da leitura.

 

 

x-force

 

Voltando à Feira do Livro... Desta vez, não serviu tanto para ir descobrindo mais da obra de Cunningham ou de alguns seus contemporâneos (Jay McInerney, Richard Ford, Douglas Coupland, David Leavitt...), mas para voltar a esgravatar bancas de alfarrabistas. A mania vem desde que há uns 15 anos, e com uns 15 anos, percorria quiosques e lojas entre o Rossio e o Cais do Sodré (ou a Feira da Ladra, se fosse à terça ou ao sábado), quase sempre à procura de BD, quase sempre de comics.

 

O hábito foi ficando pelo caminho (a internet foi chegando entretanto, outros hobbies também) e a Feira do Livro deu para matar as saudades. Até porque é sempre bom juntar mais umas edições da fase mais divertida da "Liga da Justiça" à colecção, a de Keith Giffen e J. M. DeMatteis, antes da tendência "séria" da DC pós-Nolan (com todas as excepções). Ou de um dos momentos mais subestimados da Marvel nos anos 90 (e do universo mutante em especial), a "X-Force" de John Francis Moore e Adam Pollina, outro caso de personagens de segunda linha que tiveram direito a uma vida mais interessante (e mutável) do que muitas das principais, à margem das grandes sagas e eventos da casa (ter um fraquinho por histórias coming of age na estrada ajuda). Já a bolsa de apostas ficou deste lado do Atlântico, com "Alguns Dias com um Mentiroso", do francês Étienne Davodeau - para descobrir, de preferência, antes da próxima romaria às bancas do Parque Eduardo VII.

 

algunsdiascomummentiroso

 

ligadajustica