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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Esta sexta-feira vai ser dela

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Artista multidisciplinar, DEBBY FRIDAY tem dividido os seus interesses entre a realização (já dirigiu uma curta-metragem e vários videoclips), a poesia ou um passado como DJ, mas é na criação musical que tem apostado mais nos últimos tempos.

Esta sexta-feira, 24 de Março, a nigeriana radicada no Canadá edita finalmente o álbum de estreia, através da Sub Pop, depois de ter aberto caminho com dois EPs e uma mão cheia de singles desde 2018.

Disco inspirado pelos desafios da entrada na idade adulta, "GOOD LUCK" resulta de anos de escola na noite, na qual a pista de dança era catarse para uma jovem negra, imigrante e queer entregue a dependências várias (álcool, drogas, amor tóxico) e a períodos de raiva, ansiedade e depressão.

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"Bitchpunk" (2018) e "Death Drive" (2019) já davam conta dessas tensões com música inquieta e visceral, feita de estilhaços industriais, dub, darkwave ou EBM moldados por uma voz a reclamar heranças do rap. Um tema como "Fatal" insinuou descendências do clássico "Closer", dos Nine Inch Nais, da marcha sintetizada à crueza de um relato que combinou sexo e obsessão. Já outros momentos dispensaram o formato canção e poderiam acompanhar uma ficção científica distópica ou um filme de terror.

Santigold, Shygirl, Light Asylum ou Death Grips são outros parentes próximos de uma música que também assume referências menos evidentes: a autora revela que o cinema de Éric Rohmer e a escrita de Sylvia Plath deixaram uma marca forte na criação do álbum, assim como leituras regulares sobre filosofia, psicologia ou astrologia e preocupações com a saúde mental.

Os singles iniciais tanto sugerem renovação como cimentam pistas dos primeiros dias. "SO HARD TO TELL" faz uma viragem inesperada para a pop em cenário de balada r&b, com uma vulnerabilidade inédita até agora; "I GOT IT" sobe a fasquia num portento de ritmo e atitude, em inglês e castelhano, ao lado de UÑAS (Chris Vargas, vocalista da dupla de Toronto Pelada); e "HOT LOVE" não fica a dever muito à faceta mais intempestiva e flamejante de uns Crystal Castles, num regresso à euforia raver da DEBBY FRIDAY declaradamente noctívaga. Parece que esta sexta-feira vai ser mesmo dela (partilhada, vá, com os Depeche Mode, noutro campeonato)...

Canções para agarrarmos o coração enquanto caímos

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"Holding my heart while falling", canta Karin Dreijer em "Carbon Dioxide", um dos pontos altos do seu terceiro e novo álbum enquanto FEVER RAY. É talvez o momento que melhor sintetiza a mistura de radicalismo e romantismo de um disco apropriadamente intitulado "RADICAL ROMANTICS", reflexão em torno da procura do amor que conjuga vulnerabilidade e uma estranheza que esta voz já carrega desde os tempos dos The Knife.

A outra metade da dupla sueca, o seu irmão Olof, é, aliás, um dos colaboradores do sucessor do melancólico longa-duração homónimo (2009) e do agreste "Plunge" (2017). Talvez por isso um single como "Kandy", acesso de languidez tropical na linha do clássico "Pass This On", soe mais a um passo ao lado dos The Knife do que a uma novidade de FEVER RAY, embora essa aproximação não seja tão evidente noutros temas às primeiras audições do disco.

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Apesar de não dispensar uma excentricidade às vezes grotesca, que também vinca a imagem (da capa do álbum aos videoclips), "RADICAL ROMANTICS" acaba por ser menos radical do que o antecessor e também mais acessível do que a estreia. Não é exactamente um disco polido: das texturas vocais processadas (com apoteose no final de "Shiver") aos ritmos híbridos, com percussão e furor industrial, estas canções mantêm intacto o ADN de quem as assina. Mas também parece haver uma maior atenção à composição do que em "Plunge" e um aprumo melódico rumo a uma pop electrónica mais digerível ao primeiro impacto.

Além de Olof Dreijer em quatro faixas, a lista de convidados inclui a portuguesa Nídia, a transitar do álbum anterior, ou Trent Reznor e Atticus Ross, dupla responsável por um dos episódios mais incisivos: "Even It Out", que mais do que os Nine Inch Nails remete para o caminho (enfurecido) que os também regressados Yeah Yeah Yeah poderiam ter seguido (mas talvez nem eles se atrevessem a sugerir este cenário de vingança parental, ainda que temperado com um sentido de humor seco, depois do caso de bullying descrito na letra).

Outro tema para ouvir com o coração na mão, "What They Call Us" abre o alinhamento com uma ansiedade que não será alheia ao facto de Karin Dreijer se ter assumido artista queer na altura da edição de "Plunge". Alerta em tempo de totalitarismos e intolerância, contrasta com a serenidade glacial de "North", cuja moldura sonora criada por Reznor e Ross sugere ecos da famigerada "Running Up That Hill", de Kate Bush.

Mas a contribuição mais preciosa talvez seja a do britânico Vessel na já referida "Carbon Dioxide": prodígio de produção a elevar uma das composições mais inventivas, é um frenesim de urgência, arrojo vocal, sintetizadores e cordas ao nível do melhor de FEVER RAY e dos próprios The Knife. Aguenta, coração...