Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Há 20 anos, a rainha da pop juntou country e música de dança

Madonna_Music.jpg

Que passo dar a seguir à aclamação de "Ray of Light" (1998), para muitos a obra-prima de MADONNA? Embora tenha mantido alguns ingredientes desse álbum, "MUSIC" evitou repetir a receita e alternou entre a introspecção e o convite à dança, num digno sucessor de um clássico.

Editado a 18 de Setembro de 2000, o oitavo álbum de MADONNA continuou a apostar na exploração electrónica do disco antecessor, embora não se tenha limitado a oferecer uma sequela - por muito que essa também pudesse ter sido bem acolhida.

Se é verdade que a rainha da pop não abdicou da colaboração com o britânico William Orbit, responsável pela produção cristalina de "Ray of Light", "MUSIC" representou um momento de viragem ao também convocar o suíço Mirwais, cúmplice que teria um peso ainda maior no registo seguinte, o tão subestimado como arriscado "American Life" (2003), e que permaneceria entre os colaboradores habituais até hoje (como o confirma o alinhamento do recente "Madame X").

Ouvido à distância de 20 anos, "MUSIC" pode hoje ser encarado como um disco de transição entre as texturas agridoces do anterior e a carga mais ríspida do sucessor, enquanto se vai movendo entre essas duas vertentes sem esforço. "Hey, Mr. DJ, put a record on. I wanna dance with my baby", ouve-se no arranque do álbum e da faixa-título. E o que se segue é um apelo ao hedonismo e à comunhão na pista de dança através de heranças do french touch, com um embalo funk digital disparado por Mirwais.

O frenesim mantém-se imparável na viciante "Impressive Instant", que comprova logo que alguns dos pontos altos de "MUSIC" não tiveram direito a edição em single. Com a voz processada como poucas (ou nenhumas?) vezes até aqui, tendência que o produtor suíço levaria ainda mais longe, MADONNA vestiu bem a pele de diva raver robótica sem deixar de experimentar outros papéis ao longo do disco.

"Nobody's Perfect", outra parceria preciosa com Mirwais, continua a ser das baladas mais inventivas da pop das últimas décadas, casamento brilhante entre o maquinal (reforçado pelo vocoder) e o humano (na vulnerabilidade exposta na letra e na melodia). Orbit, no entanto, também não se saiu nada mal em "I Deserve It", belíssimo cruzamento electroacústico e dos que revelam, de forma mais directa, um lado confessional inspirado pela relação da autora com Guy Ritchie. O tema também é dos que estão mais próximos dos ambientes da country, cujo imaginário vincou boa parte da componente visual desta fase (começando pela capa do álbum).

Madonna_Music_2.jpg

"Don't Tell Me", criada a partir de "Gone", de Joe Henry (cantautor ligado à alternative country e cunhado de MADONNA), é mais uma desconstrução conseguida da guitarra acústica através das possibilidades electrónicas, com um loop orelhudo a vincar um single óbvio. Outra pérola do alinhamento, "Amazing" retoma o psicadelismo borbulhante de "Beautiful Stranger" (single editado um ano antes do disco) numa versão revista e melhorada - e soa indiscutivelmente a uma produção de William Orbit. Bem mais sombria (talvez mesmo a mais sombria do disco), "Paradise (Not for Me)" foi repescada do segundo álbum de Mirwais, o recomendável "Production", também editado em 2000, e revela uma MADONNA praticamente irreconhecível - novamente com a voz sujeita às manobras do suíço.  

Já "What It Feels Like for a Girl" distingue-se pela candura de um relato feminista que teve Guy Sigsworth e Mark "Spike" Stent como produtores, com o segundo a dividir os créditos com Orbit em "Gone", outro bonito exemplo de uma folktronica que teria expansão em "American Life". "Runaway Lover", por outro lado, parece dever mais ao trance e fica aquém das outras faixas, na contribuição menos memorável de Orbit. Nada que o britânico não tenha compensado em canções na linha da que fecha o disco, "American Pie", originalmente editada na banda sonora de "Ligações Imprevistas" e a dar novo fôlego (via pop electrónica, lá está) ao original de Don McLean. "I knew if I had my chance/ That I could make those people dance/ And maybe they'd be happy for a while", voltou a cantar MADONNA. E em álbuns como "MUSIC", atingiu esse objectivo com distinção.

Há uma luz que nunca se apaga... e já brilha há 20 anos

Ray_of_Light

O álbum imprescindível da rainha da pop? Se não o é, foi pelo menos dos mais decisivos para que MADONNA conseguisse manter esse estatuto. Editado a 22 de Fevereiro de 1998, "RAY OF LIGHT" tem aura de clássico luminoso, 20 anos depois.

Como responder à polémica escaldante de "Erotica" e do livro "Sex" (1992) e à recepção morna ao já de si morno "Bedtime Stories" (1994), que dominaram o percurso de Madonna durante boa parte da década de 90? A solução não era óbvia, mas se muitos talvez apostassem num reforço da provocação, a "material girl" inverteu as expectativas ao abraçar a serenidade depois de ter sido mãe (de Lourdes Maria, em 1996). Ou a serenidade possível, já que "Ray of Light" recupera a paixão da cantora pela música de dança, mais vincada nos seus primeiros álbuns, à luz (passe a expressão) das tendências electrónicas de final de milénio.

Num dos momentos em que se mostrou mais certeira na escolha das companhias, teve no britânico William Orbit (vindo de projectos relativamente marginais como Bassomatic ou Strange Cargo) o aliado ideal para se atirar tanto à house, ao techno e até ao trance como a cenários mais contemplativos. "I traded fame for love/ Without a second thought", cantava na faixa de abertura, "Drowned World/Substitute for Love", na qual aceitava contaminações trip-hop num dos episódios mais cristalinos desta reinvenção inesperada.

Madonna_1998

Onde estava quem tinha entoado "put your hands all over my body" de forma tão decidida uns anos antes? Deixava ecos, ainda assim tímidos, numa delícia (esquecida?) de guitarras e sintetizadores como "Candy Parfum Girl", mas em "RAY OF LIGHT" predomina o olhar introspectivo de pérolas na linha de "To Have and Not to Hold", "Sky Fits Heaven" ou "Skin", mesmo que em moldura de pulsão rítmica (à lista poderia juntar-se a mais tranquila "Has to Be", infelizmente remetida para lado B). E se dá vontade de perguntar como é que nenhuma foi single, é difícil reclamar dos temas que tiveram esse privilégio. Sobretudo de "Frozen" e "The Power of Good-Bye", baladas tão frescas e memoráveis (ambas com arranjos de cordas de Craig Armstrong) que levam a desculpar o escorregão ocasional para o misticismo new age de algumas letras (ainda que o videoclip da primeira, a cargo de Chris Cunningham, tenha aproveitado ambientes esotéricos para ficar entre os mais icónicos do seu tempo).

Além de ser um dos pontos de paragem obrigatória da carreira de MADONNA, o seu sétimo álbum foi facilmente dos melhores desse ano (o que não é dizer pouco quando 1998 teve regressos muito inspirados dos Garbage, Massive Attack, Smashing Pumpkins, Hole ou Placebo) e abriu portas para a fase electrónica da sua discografia. E se a produção electroacústica de "Music" (2000) e sobretudo de "American Life" (2003) até foi mais arrojada (cortesia de Mirwais) e "Confessions on a Dance Floor" (2005) potenciou a última grande reinvenção, enquanto colecção de (grandes) canções "RAY OF LIGHT" continua imbatível - parabéns também por isso.