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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Uma mulher na cidade, 20 anos depois

Stories from the City, Stories from the Sea.jpg

20 anos depois, "STORIES FROM THE CITY, STORIES FROM THE SEA" ainda é, de longe, o álbum mais directo e acessível de PJ HARVEY. Mas se noutros casos poderia ser encarada como uma cedência, esta carta de amor a Nova Iorque mantém-se entre o melhor da discografia da britânica.

Não, um músico não precisa de estar sempre amargurado para que a obra seja impactante e inspirada. E o quinto álbum de Polly Jean Harvey, o mais luminoso de um percurso que marcou como poucos o rock das últimas décadas, é dos exemplos mais claros que contrariam essa ideia feita (às vezes ainda demasiado presente).

Sucessor de "Is This Desire?" (1998), disco assombrado e atmosférico, de texturas complexas e experimentação electrónica recorrente (a denunciar ecos do trip-hop), "STORIES FROM THE CITY, STORIES FROM THE SEA" foi editado a 24 de Outubro de 2000 e desviou os horizontes da voz de "Down by the Water" para algo completamente diferente, surpreendendo muitos por ser tão melódico e polido - características pouco associadas à britânica, nem mesmo no romantismo de "To Bring You My Love" (1995).

PJ HARVEY revelou na altura a ambição de um disco que fosse a antítese do negrume dos antecessores, propondo uma viragem em direcção à beleza guiada por uma sensibilidade pop. Mas se noutros percursos essa opção poderia equivaler a facilitismo, aqui o resultado manteve as qualidades que moldaram uma das discografias mais imaculadas desde inícios dos anos 90.

Ainda há quem aponte este como o registo mais "comercial" da britânica, num sentido algo pejorativo, e é verdade que teve um papel considerável no reforço da sua popularidade - os singles mostraram-se mais compatíveis com algumas playlists radiofónicas, o aplauso crítico teve expressão particularmente forte na atribuição do Mercury Prize (o primeiro de sempre para uma artista a solo). Mas se assim foi, tanto melhor: "STORIES FROM THE CITY, STORIES FROM THE SEA" mereceu chegar ao maior público possível enquanto não deixou de ser, tal como os anteriores, um álbum com histórias que falam entre si e não apenas um conjunto de canções alinhadas no mesmo disco.

Co-produzido com os cúmplices habituais Mick Harvey e Rob Ellis, foi composto entre Nova Iorque (onde a cantora viveu alguns meses em 1999), Londres e a sua terra-natal, Dorset, na costa britânica. Mas apesar do título, a atmosfera que percorre o alinhamento é bem mais urbana do que marítima, em crónicas que deixam quase inteiramente de lado as metáforas dos discos anteriores para relatos directos, com muitas menções a espaços da cidade que nunca dorme.

PJ-Harvey.jpg

"Big Exit", com um sentido de urgência ao nível dos dias de "Rid of Me" (1993), é um arranque implacável embora pouco representativo do que se segue, menos movido pela inquietação e desespero - exceptuando "The Whores Hustle and the Hustlers Whore", outro dos picos de intensidade do álbum. A partir da segunda faixa, "Good Fortune", "STORIES FROM THE CITY, STORIES FROM THE SEA" adopta um tom mais pessoal nas letras e mais contido na descarga sonora, ao ponto de a sua autora chegar a lembrar mais uma descendente de Chrissie Hynde do que de Patti Smith (sobretudo numa canção como "You Said Something", belo momento de nostalgia amorosa ao luar num arranha-céus, ancorado num gancho de guitarra irresistível).

São quase sempre histórias vividas a dois, no presente ou no passado, e com direito a voz masculina em três momentos: a de Thom Yorke, com quem Harvey partilhou o protagonismo em "This Mess We're In" e convidou para os coros de "Beautiful Feeling" e "One Line" - esta última com o vocalista dos Radiohead a brilhar especialmente alto, num dos crescendos mais vertiginosos.

Menos essencial, "Kamikaze" destoa liricamente mas é um disparo de adrenalina eficaz e a abrir caminho para "This Is Love",  outro acesso portentoso e com Harvey a atirar-se de cabeça à luxúria enquanto sacode inquietações ("I can't believe that life's so complex/ When I just want to sit here and watch you undress"). Esse desprendimento também passa, ainda que de forma mais contemplativa, por "We Float", despedida memorável guiada pelo piano, orgão e um loop percussivo. "Take life as it comes", repete, ao encontrar uma serenidade que também marcou "A Place Called Home" ou "Horses in My Dreams", outras pérolas a (re)descobrir ao longo de "STORIES FROM THE CITY, STORIES FROM THE SEA". Só é pena que nem toda a pop brilhe assim...

Fundo de catálogo (111): PJ Harvey

Is This Desire

Muitas vezes esquecido numa discografia à qual não faltam pontos altos, "IS THIS DESIRE?" foi dos passos mais aventureiros de PJ HARVEY - e dos seus álbuns com um parto mais conturbado. 20 anos depois, continua a ser um retrato sublime (e às vezes difícil) de experiências femininas à beira do abismo.

Depois de três álbuns que a tornaram, para muitos, na primeira dama do rock e do blues dos anos 90, Polly Jean Harvey terminou a década num registo inesperadamente implosivo, a milhas dos riffs viscerais de "Dry" (1992) e "Rid of Me" (1993) e da teatralidade de "To Bring You My Love" (1995), este último a impor um patamar especialmente elevado no percurso da britânica - é, ainda hoje, um dos seus discos mais consensuais.

"IS THIS DESIRE?", no final de 1998, fez figura de "difícil" quarto álbum, consideravelmente menos acessível do que qualquer um dos anteriores e até com recantos impenetráveis aos primeiros contactos. Mas também caso evidente de um disco que pede tempo e recompensa audições repetidas, convidando ao mergulho nos retratos de várias mulheres (muitas a darem título às canções), todas com experiências no limite do desejo, do abandono ou da tragédia.

The Wind

Sucessão de contos dominados por um pessimismo que chega a ser críptico (confirmar na secura distorcida de "My Beautiful Leah") e sorumbático (no cântico moroso da esquelética "Electric Light"), o alinhamento dá prioridade a uma PJ HARVEY em modo sussurrante mas não reprime por completo o grito de outros tempos ("The Sky Lit Up" ou "No Girl So Sweet", fulminantes, ajudam a dar outra vertigem à jornada) nem as oscilações recorrentes entre um registo grave e agudo (a testar, talvez como nunca antes, as potencialidades da sua voz, num processo de assimilação pouco imediata). 

A faixa-título, a última do alinhamento, traz finalmente alguma luz a um disco nebuloso e atmosférico, nascido de um período criativo que a britânica coloca entre os mais obsessivos da sua obra, vivido numa fase de recolhimento entre Londres e Dorset, a sua cidade-natal. Mas também como o mais arrojado e gratificante até à data, com uma sonoridade exploratória que teve os já habituais John Parish, Mick Harvey e Rob Ellis entre os cúmplices.

Desire

Flood, na produção, terá sido responsável pela presença rude e até fantasmagórica do baixo em várias ocasiões. Marius De Vries também ajudou a consolidar o efeito sensorial de um álbum no qual o piano e a electrónica roubam protagonismo às guitarras, com contaminações de ambientes industriais ou do trip-hop mas sem se fixarem num território específico (o borrão sonoro de "Joy" fica como um dos exemplos mais claros e cinéticos).

Entre os episódios particularmente memoráveis destas colaborações contam-se uma "The Garden" enigmática e inquietante - numa rara ocasião em que o relato feminino cede espaço ao masculino -, lado a lado com o romantismo de "Angelene", no belíssimo arranque pintado a blues, e sobretudo de "The River", que em alguns dias parece subir ao pódio das melhores canções de sempre de PJ HARVEY - mérito de uma das suas interpretações mais comoventes e de uma moldura sonora que aperfeiçoa a grandiosidade de "To Bring You My Love". Não é feito de que muitos álbuns possam orgulhar-se, convenhamos, e está entre os óptimos pretextos para (re)descobrir um dos discos mais singulares de finais dos anos 90...