De volta para a décima edição, o QUEER PORTO decorre de 8 a 12 de Outubro nos cinemas Batalha e Passos Manuel e também na Casa Comum. Neste terceiro espaço, da Reitoria da Universidade do Porto, há sessões e debates de entrada livre da secção Queer Focus (dedicada a pessoas e comunidades LGBTQI+ de diversas geografias), incluindo duas curtas que estiveram entre as boas apostas do mais recente Queer Lisboa. Vale a pela descobri-las no dia 9, às 18h00.
"A'LAM", de Saleh Saadi: O realizador palestiniano que se debruçou sobre a relação entre um pai e um filho na sua primeira curta, "Borekas" (2020), parte da cumplicidade entre dois jovens adultos seus conterrâneos na segunda. Curiosamente, uma viagem de carro volta a ser determinante para o embate emocional entre a personagem interpretada pelo próprio autor (que também assina o argumento) e a da sua amiga de longa data, que se prepara para emigrar de Jerusalém para os EUA. A partida traz à tona memórias, medos e ressentimentos ao longo de 25 minutos num pequeno grande filme que tem mais a dizer do que muitas longas. E sabe como dizê-lo, abordando questões de identidade, liberdade e género assentando numa dinâmica emocional na qual é fácil acreditar. Mérito de dois desempenhos (de Saadi e da actriz Abeer Lawen) fiéis ao travo realista deste retrato e de uma escrita que não força a nota ao mergulhar no conflito israelo-palestiniano, expondo limitações quotidianas do ponto de vista árabe sem fazer dos protagonistas bandeiras de uma causa. Pelo contrário, mostra-os a interrogarem-se mutuamente e partilha essas interrogações com o espectador.
4/5
"BUFFER ZONE", de Savvas Stavrou: A relação entre o corpo, a música e a dança não é novidade para um realizador que, além de algumas curtas de ficção, tem no currículo dois videoclips de canções dos The Irrepressibles ("Submission" e "Let Go"). Na sua obra mais recente, o cipriota radicado em Londres volta a esses territórios em ambiente militar, num pequeno relato em que a primeira fronteira é física e separa dois jovens soldados de lados opostos. Acompanhando um cipriota grego que tem uma paixão platónica por um cirpriota turco, desenha uma visão sensível e sentida, ainda que algo ingénua, sobre um amor não necessariamente em tempos de guerra, mas pelo menos num contexto heteronormativo e de masculinidade tóxica. Desta vez não há música dos The Irrepressibles, antes clássicos dos Bon Jovi, Radiohead e Kate Bush, banda sonora essencial para que este salto para o realismo mágico se concretize. Quem estiver disponível para baixar as armas do cinismo encontra aqui 16 minutos escapistas, etéreos e levitantes...
Não têm faltado boas surpresas na 28.ª edição do QUEER LISBOA, com sessões no Cinema São Jorge e na Cinemateca até dia 28 de Setembro. Os primeiros filmes do francês Antoine Chevrollier e da norte-americana Theda Hammel, ambos da secção competitiva de longas-metragens, são prova disso.
"LA PAMPA", de Antoine Chevrollier: Primeira longa-metragem de um realizador com um percurso até aqui televisivo (foi um dos criadores da elogiada minissérie "Oussekine"), este drama centrado em dois adolescentes na França rural ainda tem marcas pontuais dessa escola no pequeno ecrã: é por vezes algo episódico e até esquemático ao abordar questões que pediam maior fôlego. Mas também abraça, com sensibilidade e um realismo palpável (Chevrollier filmou nos arredores de Angers, a sua cidade natal, o que terá ajudado), um retrato coming of age vincado por um coming out traumático e a deixar marcas evidentes numa comunidade (ainda) conservadora.
Déjà vu? Algum... Não estará certamente aqui uma das propostas mais transgressoras desta edição do festival. Por outro lado, estes tempos de alguns direitos e liberdades pouco garantidos tornam mais urgente um olhar sobre a masculinidade tóxica, a homofobia e pressões paternais ou de grupo, aqui com a particularidade de se centrar não na figura ostracizada, mas no seu melhor amigo (atravessado por outros dramas numa história que também aborda o luto), e de fazer tangentes ao filme de desporto (os protagonistas têm no motocross um dos elos da sua relação fraternal).
Entre ecos do cinema do conterrâneo André Téchiné (vertente rapazes do interior, de "Os Juncos Silvestres" a "Quando Se Tem 17 anos") e narrativamente próxima do recente "Close", de Lukas Dhont (sendo até mais equilibrado do que este), é uma viagem iniciática muito bem conduzida por um elenco coeso, dos jovens Sayyid El Alami e Amaury Foucher (no seu primeiro papel) a veteranos como Damien Bonnard. A passagem aplaudida por Cannes, de onde saiu este ano com três nomeações (incluindo para a Queer Palm), reforça o embalo de uma estreia promissora.
3/5
"STRESS POSITIONS", de Theda Hammel: E se a neurose (em tempos) nova-iorquina de Woody Allen se cruzasse com o surrealismo delirante e excêntrico de Gregg Araki? A resposta não estará necessariamente nesta comédia com tanto de ácido como de burlesco, mas esses universos são pistas possíveis para a primeira longa-metragem de uma realizadora que conjuga o cinema com a criação musical (assinando aqui a banda sonora) ou podcasts.
Theda Hammel encarrega-se também do argumento (ao lado do actor Faheem Ali) e da montagem, integrando ainda o elenco deste recuo até Brooklyn em dias confinados, com a pandemia a trazer mais uma camada de ansiedade a um grupo de personagens já de si emocionalmente instáveis. Tudo parte da chegada de um adolescente marroquino à casa do seu tio em Nova Iorque, onde recupera de um acidente ligeiro, e da curiosidade que o novo inquilino desperta junto de alguns amigos do anfitrião.
A estadia é o rastilho para um caos de relacionamentos, ambições, disputas e preconceitos colocados em cheque num filme que não poupa ninguém. Hammel dispara em todas as direcções, não olhando a género, orientação sexual, etnia, religião ou condição social ao desenhar uma farsa tão hilariante como desconfortável.
Quem procurar uma proposta de diversidade polida e bem-comportada terá outras opções, esta não teme apontar o dedo ao individualismo, narcisismo, voyeurismo, privilégio ou pânico do envelhecimento ancorando-se na comunidade LGBTQIA+. Até porque a autora, artista trans, faz parte dela e parece conhecer muito bem o microcosmos do seu bairro, conferindo às personagens ambiguidade suficiente para não as tornar marionetas da sua tese.
A nível formal, o resultado é mais desafiante do que muitas comédias nova-iorquinas, com as duas narrações em off, aposta arriscada mas certeira, a conferirem uma gravidade inesperada pela justaposição hábil de passado e presente. E embora não seja difícil encontrar pontas soltas neste retrato com cáustico e caótico (nomeado para o grande Prémio do Júri no Festival de Sundance), vale muito a pena descobrir aqui uma nova e muito idiossincrática voz do cinema norte-americano.