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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Uma ciclista, uma professora e um influenciador sexual entram num festival

De 22 a 30 de Setembro, o QUEER LISBOA 27 instala-se no Cinema São Jorge e na Cinemateca com uma selecção de 80 filmes. Para já, ficam por aqui cinco sugestões.

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Longas, Curtas, Documentários, Panorama, "In My Shorts" e Queer Art são secções já habituais e retomadas na 27.ª edição do Festival Internacional de Cinema Queer de Lisboa, a par de uma retrospectiva (dedicada à coreógrafa e realizadora norte-americana Yvonne Rainer) ou de sessões especiais, conversas, debates e festas.

Num ano em que a organização destaca um maior número de mulheres cis e pessoas trans ou não-binárias na realização, a abertura fica a cargo de "La Bête dans la jungle", do austríaco Patric Chiha, uma adaptação livre do romance homónimo de Henry James, e o encerramento por conta de "Queendom", documentário da russa Agniia Galdanova centrado na artista queer conterrânea Gena Marvin.

Com mais de uma semana de propostas ao longo de tardes e noites, a quantidade, ao contrário da diversidade, pode intimidar à primeira vista, mas os cinco filmes abaixo parecem estar entre as apostas mais certeiras (e são quase todos de uma secção competitiva de longas-metragens especialmente aliciante).

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"O ACIDENTE", de Bruno Carboni: Primeira longa-metragem de um realizador com três curtas no currículo, este drama brasileiro arranca com o acidente mencionado no título - entre uma ciclista e um automobilista -, que vai deixando um impacto inesperado na vida dos envolvidos: inicialmente quando a vítima decide não o mencionar à companheira (que acaba por saber dele pelas redes sociais), depois quando se aproxima da família de quem a atropelou. Elogiado pelo tom atmosférico e pelos dilemas morais que coloca em jogo, teve o argumento premiado no Festival de Pequim.

Sábado, 23 de Setembro, às 16h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira

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"PORNOMELANCOLÍA", de Manuel Abramovich: Retrato do quotidiano de um influenciador sexual distinguido no festival de San Sebastián, esta combinação de documentário e ficção volta a partir, como outras obras do realizador argentino, da história de figuras reais. Desta vez o olhar recai sobre o mexicano Lalo Santos, numa altura em que faz audições para um filme pornográfico, lida com um cenário familiar algo conturbado e mantém uma rotina mais solitária do que a popular presença nas redes sociais poderia sugerir. Quem procurar provocação, humor e subversão pode seguir por aqui.

Sábado, 23 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira

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"BLUE JEAN", de Georgia Oakley: É dos filmes mais premiados desta edição, e entre as mais de duas dezenas de nomeações conta com um BAFTA. Primeira longa-metragem de uma realizadora e argumentista cujas curtas já tinham gerado entusiasmo, retoma a tradição do realismo britânico ao ambientar-se na Inglaterra de finais dos anos 80, seguindo uma professora de educação física de Newcastle que mantém secreta a sua orientação sexual - pelo menos até ao dia em que a chegada de uma nova aluna pode determinar o fim de uma vida dupla.

Quarta, 27 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira

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"OPPONENT", de Milad Alami: O iraniano Payman Maadi, conhecido (e memorável) por "Uma Separação" ou "A Lei de Teerão", protagoniza este drama familiar sobre uma família sua conterrânea obrigada a fugir do seu país-natal. A promessa de uma nova vida começa a esboçar-se na Suécia, mas a adesão do patriarca a uma equipa de wrestling local desencadeia uma série de acontecimentos que podem deitar tudo a perder. Segunda longa-metragem do realizador sueco (nascido no Irão), chega com vários elogios e nomeações do Festival de Berlim, entre outros.

Quinta, 28 de Setembro, às 19h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira

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"PASSAGES", de Ira Sachs: O novo filme do autor de "Homenzinhos" (2016) e "Love Is Strange - O Amor é uma Coisa Estranha" (2014) tem direito a sessão especial. E além do nome do realizador, esta história de um triângulo amoroso desperta logo outro interesse pelo elenco, que junta Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos nos papéis principais. Ambientado no mundo artístico e boémio de Paris, acompanha um cineasta que abandona o companheiro depois de se envolver com uma mulher, desenhando um relato acolhido com mais aplausos do que "Frankie" (2019), o filme anterior (e morno) do norte-americano. No Festival de Berlim, contou este ano com duas nomeações (prémio do público e Teddy).

Sexta, 29 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira

Cinema nada protocolar (cortesia da nova geração brasileira)

Depois do documentário "Deus tem AIDS", premiado no Queer Porto no ano passado, os realizadores brasileiros Fábio Leal e Gustavo Vinagre voltaram a estar em destaque na mais recente edição do QUEER LISBOA. Desta vez em separado, mas ambos com longas-metragens saudavelmente livres e transgressoras, cruzando humor e ansiedade pandémica.

Seguindo Todos os Protocolos.jpg

"SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS", de Fábio Leal: Variação muito singular sobre o "filme da pandemia", a primeira longa-metragem do realizador (e actor, argumentista e produtor) de curtas como "O Porteiro do Dia (2016) ou "Reforma" (2018) foi criada durante o confinamento e explora as inquietações de um homem gay solitário, carente e hipocondríaco, interpretado pelo próprio.

O protagonista decide ter sexo após dez meses de privação, mas está decidido a tomar todas as precauções contra a COVID-19, o que o atira para um processo tão angustiante como delirante nesta crónica de medos e afectos sempre pessoal mas transmissível. Filme literalmente muito lá de casa, é um olhar lúcido e lúdico sobre as contradições de uma fase de incerteza, aqui alimentada pelo refúgio no isolamento e numa dieta de redes sociais.

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Capaz de conjugar humor autoconsciente (e em certa medida auto-crítico) e uma vulnerabilidade assinalável, Fábio Leal compensa com ideias visuais e de escrita os poucos recursos que tem à mão, mantendo um olhar tão clínico como sensual sobre um quotidiano atravessado por fases depressivas, pela tensão às vezes difusa entre a cumplicidade e o abuso ou por fantasmas da presidência de Bolsonaro.

Filmando o sexo entre homens com espontaneidade e fintando tanto o pudor como o choque, acompanha a tentativa de equilíbrio entre desejo e paranóia do protagonista enquanto recusa dar prioridade a corpos masculinos de beleza estereotipada. E no caminho do desespero ao gozo vai sugerindo ser um realizador para continuar a seguir: de uma conversa por webcam que não perde o fôlego ao longo dos cerca de dez minutos de duração, sempre com plano fixo, à entrada em cena da belíssima "Cuidado, Paixão", de Letrux, num dos momentos mais bonitos do filme, há aqui um claro olhar de cineasta.

3,5/5

Três Tigres Tristes.jpg

"TRÊS TIGRES TRISTES", de Gustavo Vinagre: Vencedor do Teddy Award de Melhor-Longa Metragem do Festival de Berlim este ano, o novo filme do autor de "Vil, Má" (2020) e "Desaprender a Dormir" (2021) foi dos mais arriscados e refrescantes do QUEER LISBOA 26. Distopia divertidíssima ambientada numa São Paulo a lidar com uma pandemia de sinais particulares (e com efeitos na memória dos infectados), segue o caminho errático de três jovens pela cidade num registo episódico que não se contenta com um género.

A comédia, muitas vezes a tirar partido da irrisão camp, marca boa parte da viagem, mas há desvios para o musical ou acessos oníricos num filme invulgarmente solto e genuinamente queer. Entre piscadelas de olho à obra de John Waters, Pedro Almodóvar ou David Lynch, Vinagre conjuga o humor com uma ode aos marginalizados, sejam homo ou transexuais, trabalhadores do sexo, seropositivos ou idosos deixados ao abandono. E por isso este é um retrato que acaba por esbarrar na tragédia, no racismo, na homofobia ou no conservadorismo, embora opte por enfrentá-los com um sorriso tão insolente como a postura dos três protagonistas.

Se o elenco se mostra irregular e às tantas o argumento dispara em várias direcções, esta nunca deixa de ser uma experiência que mantém doses generosas de provocação, graça e carisma entre quadros visuais muito inspirados (o realizador tem bom olho tanto para exteriores como interiores, das avenidas paulistas a uma curiosíssima loja de velharias ou um cardume de antologia). Uma aparição fulminante de Inês Brasil e a escola "Ru Paul’s Drag Race" contribuem depois para algumas das cenas mais esgrouviadas e reforçam que "TRÊS TIGRES TRISTES" também é, à sua maneira, um filme sempre pop.

3,5/5