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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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O favorito do rei

Uma Julianne Moore disposta a tudo, incluindo usar o filho como moeda de troca no elevador aristocrático? Não está mal como premissa de uma farsa viperina de época. E os dois primeiros episódios de "MARY & GEORGE", nova minissérie da SkyShowtime, defendem-na com ironia e manobras de sedução q.b..  

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Qualquer semelhança de "MARY & GEORGE" com a realidade não será pura coincidência: o drama criado por D. C. Moore ("Not Safe for Work") e com os três primeiros episódios dirigidos por Oliver Hermanus ("Viver") parte do livro "The King's Assassin" (2017), de Benjamin Woolley, centrado na história verídica de uma mãe e de um filho de origens humildes, Mary e George Villiers, que não olharam a meios para atingir os fins na Inglaterra do século XVII.

Mas qualquer semelhança com a ficção também não será: o olhar ácido e polvilhado a humor negro sobre os bastidores da realeza tem condimentado filmes como "A Favorita", de Yorgos Lanthimos, ou a série "The Great" (HBO Max), duas referências recentes e praticamente indissociáveis da saga de manipulação, desejo e ascensão protagonizada por Julianne Moore e Nicholas Galitzine (actor britânico que era um aristocrata de berço em "Red, White & Royal Blue", a popular comédia romântica gay da Prime Video).

Ainda assim, o que "MARY & GEORGE" talvez perca em novidade parece ganhar em convicção e "savoir faire", pelo menos no arranque: a minissérie de sete episódios está a minhas da modorra narrativa e indiferença visual que domina outros dramas históricos britânicos "de prestígio", sendo tão ágil a fazer avançar a aliança entre mãe e filho no jogo de xadrez social como a aproveitar o olhar de realizador de Hermanus nestes ambientes (próximo das personagens sem dispensar a sumptuosidade, equilíbrio para o qual a direcção de fotografia também é decisiva, sobretudo nas vertente sombria das cenas de interiores).

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A meta é fazer de George o favorito do Rei James VI da Escócia e de Inglaterra (Tony Curran), cuja atenção é disputada por inúmeros rapazes da corte e fora dela, tornando o sexo na moeda de troca possível de um retrato em que a luta de classes não se concretiza sem a iniciação carnal. E por aí, "MARY & GEORGE" também pode ser visto como uma variação queer de "Jeanne Du Barry - A Favorita do Rei", o mais recente filme de Maïwenn, ao acompanhar o triunfo de uma figura inicialmente marginalizada enquanto critica a hipocrisia da alta sociedade. Já a relação tensa entre mãe e filho lembra um papel algo esquecido de Moore, "Desejos Selvagens - Savage Grace", interessante e transgressor filme de Tom Kalin que tinha uma disputa familiar no centro (embora fosse substancialmente mais sórdida).

Valendo-se de uma actriz em estado de graça, em modo frio e calculista mas, ainda assim, capaz de conferir vulnerabilidade a uma mulher renegada e movida pelo instinto de sobrevivência (dela e, sobretudo, dos filhos), este drama cáustico convence igualmente nos secundários ou na banda sonora electroacústica de Oliver Coates, aglutinadora de escolas clássicas e contemporâneas e também ela a ajudar "MARY & GEORGE" a distinguir-se de algumas comparações óbvias. 

"MARY & GEORGE"  estreou-se na SkyShowtime a 8 de Março. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as sextas-feiras.

Os espíritos de Kilkinure

Thriller gótico comandado por uma brilhante Ruth Wilson, "A MULHER NA PAREDE" recupera fantasmas comunitários para não esquecer um dos capítulos mais negros da história da Irlanda. Disponível na SkyShowtime, é uma minissérie com tanto de claustrofóbico como de envolvente aos primeiros episódios.

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Se outros motivos não houvesse, o desempenho de Ruth Wilson destaca-se logo como um óptimo pretexto para espreitar a mais recente aposta da SkyShowtime (originalmente estreada no Verão passado na BBC One, canal co-criador da minissérie de seis episódios). A sua Lorna, residente da pequena localidade fictícia irlandesa Kilkinure, é o motor narrativo deste thriller atmosférico e uma protagonista simultaneamente atormentada e intrigante, cujo dia-a-dia já de si pouco luminoso (e noites marcadas por experiências de sonambulismo) se complica quando encontra um cadáver na sua casa.

Figura rude e desconfiada, com um passado traumático e sem grande apoio emocional no presente, seria uma personagem facilmente reduzida a tiques e histrionismos em actrizes menos confiáveis mas é ouro no corpo, gestos e olhares da britânica aplaudida por "The Affair" ou "Luther". Exemplo mais visível de uma direcção de actores sem mácula, na qual todos os secundários parecem ter sido escolhidos a dedo e contribuem para manter aqui a boa tradição do realismo britânico, Wilson divide o protagonismo com um sóbrio Daryl McCormack ("Peaky Blinders", "Boa Sorte, Leo Grande"), que encarna um detective de Dublin a investigar a morte de um padre.

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Qualquer relação entre as duas tragédias poderá não ser coincidência e daí nasce uma trama densa que promete escavar fundo no legado sombrio das Lavandarias de Madalena, negócios geridos por freiras católicas irlandesas, durante mais de 200 anos, através de conventos com raparigas renegadas e sujeitas a privações e humilhações (incluindo serem afastadas dos filhos).

O caso já teve ecos no cinema, como em "As Irmãs de Maria Madalena" (2003), drama memorável de Peter Mullan, mas apesar do pedido público de perdão (tardio) do Governo irlandês, em 2013, tem sido algo esquecido, sobretudo fora de portas. Embora não por toda a gente: além de Joe Murtagh, criador de "A MULHER NA PAREDE" (e realizador de "Calm With Horses" e "American Animals", filmes que não se estrearam em Portugal), Sinéad O'Connor também se lembrou dele, até por ter sido uma das vítimas dessas instituições, e revisitou-o na canção póstuma "The Magdalene Song", que poderá ser ouvida no último episódio da minissérie.

Murtagh, que também é um dos argumentistas, evita os moldes de drama social de denúncia e propõe um policial com sugestões de terror psicológico e até de algum humor sarcástico que não destoam. Pelo contrário, conferem rasgo e personalidade a um olhar que poderá agradar a adeptos do irlandês Martin McDonagh ("Em Bruges", "Os Espíritos de Inisherin") e que deixa grande expectativa nos dois primeiros episódios.

Os dois primeiros episódios de "A MULHER NA PAREDE" estão disponíveis na SkyShowtime desde 19 de Fevereiro. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as segundas-feiras.