Teremos sempre Paris (mesmo que os anos 80 já não voltem)
Outra viagem aos anos 80? Sim, mas o olhar de "OS PASSAGEIROS DA NOITE" dificilmente se confunde com o de filmes ou séries recentes ancorados na década de todos os excessos. Desde logo porque o novo drama de Mikhaël Hers é dos mais contidos e discretos - e percorrido por uma sensibilidade desarmante, numa das primeiras grandes estreias de 2023.
Uma mulher incapaz de lidar com o divórcio enquanto procura trabalho, dois filhos que optam pela fuga para a frente e uma rapariga à deriva que encontra o conforto possível nesta família parisiense em crise. Em traços gerais, o argumento de "OS PASSAGEIROS DA NOITE" não se afasta muito destas situações com muito pouco de especial, mas o segredo do filme está na forma como Mikhaël Hers molda tudo o que está à volta delas. E não há pormenor que escape ao realizador francês nesta quarta longa-metragem de uma obra pouco vista por cá - embora se imponha como uma filmografia a descobrir tendo em conta este exercício tão melancólico como afectuoso e atmosférico.
Guiado por uma Charlotte Gainsbourg em estado de graça, na pele de uma mulher simultaneamente desamparada e emancipada, é um retrato de época imersivo como poucos, com uma reconstituição dos anos 80 que não se reduz ao efeito (noutros casos escancarado e garrido) de reconhecimento e nostalgia.
É verdade que há piscares de olho à música e ao cinema da altura: das canções de Lloyd Cole & The Commotions, Television, Joe Dassin ou Kim Wilde (com a mesma "Cambodia" que já tinha inspirado a cena de antologia de "Em Paris", de Christophe Honoré) a revisitações de Eric Rohmer e Jaques Rivette, mas também de "Gremlins" ou do injustamente esquecido "Asas de Liberdade" ("Birdy", no original), de Alan Parker.
Mais surpreendente, no entanto, é a colagem de elementos que tornam o filme num pequeno prodígio estético, da realização que cruza a acção, captada em 16mm, com imagens de arquivo (verdadeiras ou falsas?) de forma quase imperceptível, à fotografia envolvente de Sébastien Buchmann, granulada, esbatida e dominada por azuis e cinzentos. A banda sonora ajuda e, além das canções da época, destacam-se os instrumentais de piano e sintetizadores de Anton Sanko, perfeitos para traduzir esta Paris soturna e muitas vezes nocturna, sempre com arranha-céus à vista - começando pelo cenário das gigantescas janelas do estupendo apartamento familiar, local de eleição de boa parte das cenas.
Claro que todo este apuro visual e sonoro não surtiria grande efeito se não tivesse um retrato das personagens à altura. "OS PASSAGEIROS DA NOITE" nunca deixa de as abraçar numa jornada errante iniciada em 1981, ano a propor ventos de mudança com a eleição de François Mitterrand. A crónica de Hers termina sete anos depois e nem precisa de muitos episódios inesperados (este não é um cinema dado a reviravoltas). Bastam-lhe as pequenas conquistas, algumas perdas e a descoberta de portos de abrigo na rádio ou no cinema - a primeira a permitir uma segunda oportunidade à personagem de Gainsbourg, as salas do segundo a darem mundo aos filhos e à nova cúmplice.
Pelo caminho, o realizador finta as armadilhas de relatos do envelhecimento, da doença ou da toxicodependência e destaca-se como um director de actores atento: Quito Rayon Richter e Megan Northam são revelações a seguir, Noée Abita é decisiva como centro emocional do filme (numa figura tão desamparada como fantasmagórica). Entre os veteranos, além da protagonista, Emmanuelle Béart destaca-se como uma presença intrigante cuja voz acompanha muitas solidões na rádio, pela noite dentro - movida por um humanismo e intimismo condizentes com este belíssimo retrato desenhado por Hers.
4/5