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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Um anjo na Terra

Do realismo social ao realismo mágico, com passagens pelo filme de super-heróis, thriller, alegoria religiosa ou buddy movie... "A LUA DE JÚPITER", de Kornél Mundruczó, nem sempre conjuga estes universos de forma muito coesa, mas é das aventuras mais delirantes que chegaram às salas nos últimos tempos.

 

A Lua de Júpiter

 

Depois de ter imaginado um mundo pós-apocalíptico literalmente entregue aos bichos - no caso, aos cães - no seu filme anterior, "Deus Branco" (2014), Kornél Mundruczó mostra-se tão ou mais idiossincrático no seu novo empreendimento. E mais uma vez, o realizador húngaro volta a colocar em jogo temas "actuais" sem cair no realismo árido, para não dizer sisudo e pesadão, de alguns autores contemporâneos - não é preciso ir mais longe do que outra estreia recente, o tão redundante "Uma Mulher Doce", de Sergey Loznitsa, mais um diagnóstico pessimista e esquemático da sociedade russa.

 

Não é que o retrato que "A LUA DE JÚPITER" faz da Hungria actual seja o mais abonatório, pelo contrário. O filme até é bastante frontal na denúncia de um sistema corrupto, da intolerância a vários níveis à troca de favores descarada, que se torna ainda mais frágil quando tem de lidar com a crise de refugiados dos últimos anos. Mas não só Mundruczó ainda vai conseguindo encontrar alguns raios de luz entre esse mal-estar como o faz com uma audácia narrativa atípica - e só por si já digna de nota - que consegue chegar a bom porto.

 

A Lua de Júpiter 2

 

A sequência de abertura, trepidante, acompanha Aryan, um jovem sírio (a escolha do nome não será acidental numa história marcada pela xenofobia) que tenta passar a fronteira para a Hungria e é baleado por um guarda. Mas o que aparentava ser um drama cru sobre migrantes ilegais rapidamente muda as regras quando o protagonista, além de sobreviver aos disparos, descobre que consegue levitar. E depois de entrar em cena um médico de moral dúbia que promete ajudá-lo, "A LUA DE JÚPITER" propõe um jogo do gato e do rato com uma narrativa de sinais reconhecíveis (não anda assim tão longe de muitos policiais) mas condimentos bem peculiares.

 

Se as capacidades especiais de Aryan abrem caminho para uma aventura de super-heróis, o resultado não poderia estar mais longe das ficções da Marvel ou da DC. A abordagem de Mundruczó terá mais em comum, quando muito, com as sugestões de realismo de "O Protegido", de M. Night Shyamalan, ou "Crónica", de Josh Trank, ainda que esta atmosfera seja mais suja e palpável. E como o realizador é particularmente selecto nas cenas em que o protagonista usa o seu "superpoder", a capacidade de maravilhamento acaba por sair reforçada nas sequências de antologia que o filme oferece: seja aquela que segue a lenta descida de um prédio do protagonista, enquanto o espectador vislumbra os moradores à janela (descendência do também incrível videoclip de "Protection", dos Massive Attack, assinado por Michel Gondry?), seja a que vira um apartamento do avesso sem repetir a estratégia até que o efeito se esgote (como às vezes acontecia em "A Origem", de Christopher Nolan).

 

Momentos como esse ou como outros, mais habituais, em que o protagonista levita em planos aéreos dominados por arranha-céus, são um belo contraste com a descida à terra de "A LUA DE JÚPITER", em modo mais nervoso e sufocante, na qual o argumento nem sempre é tão inspirado (a dinâmica entre um Aryan "puro" e o médico anti-herói acaba por ser previsivível q.b.), embora o olhar de Mundruczó consiga torná-lo empolgante.

 

A Lua de Júpiter 3

 

As cenas aladas podem ser das mais fortes, mas o realizador é capaz de captar um cenário urbano vivo e sinuoso, não faltando sequer uma excelente perseguição automóvel no final - e das mais minimalistas, já que só precisa de uma câmara e tira dela o maior partido para uma das injecções de adrenalina mais fortes. Alguns momentos anteriores já tinham confirmado, de resto, que o cineasta se sente à vontade nos planos-sequência, e essa energia visual acaba por compensar largamente algumas limitações - como a da dobragem mal disfarçada de uma das figuras principais, ironicamente o pormenor que mais compromete a suspensão da descrença de uma história com liberdades narrativas consideráveis.

 

Apesar desta mistura de géneros poder não ser para todos os gostos, ajuda que as personagens sejam de carne e osso e os actores também. E se Zsombor Jéger, a fazer lembrar um Gabriel Garcia Bernal mais jovem, é competente e empático como Aryan, os maiores trunfos do elenco serão os veteranos Merab Ninidze, com ecos de fura-vidas de um film noir promovido a anjo da guarda, e György Cserhalmi, o incansável vilão de serviço com mais zonas de sombra (e luz) do que os que têm chegado dos lados de Hollywood.

 

É para os EUA, aliás, que Mundruczó segue já no próximo filme - "Deeper", com Bradley Cooper e Gal Gadot - e não é nada improvável que "A LUA DE JÚPITER" ganhe uma versão norte-americana um dia destes. Mais um motivo para ver agora a original, então, que de oferta requentada já estão muitas salas cheias...

 

3,5/5

 

 

"A Lua de Jupiter" fica disponível em DVD, nos videoclubes das televisões e no Filmin a 14 de Junho.