Uma noite com sons de todas as cores
Dançar pode ser um acto político, talvez até revolucionário. É esta a ideia que fica depois de um concerto dos MASHROU' LEILA, cuja digressão mais recente percorreu vários palcos europeus (alguns esgotados) em Março. Foi o caso da Botanique/Orangerie, em Bruxelas, numa noite que testemunhou a singularidade (e grandiosidade) da banda libanesa ao vivo.
"Esta canção surgiu de uma noite num bar", confessou o vocalista Hamed Sinno já a meio do concerto da sua banda na capital belga, a 19 de Março. "Aliás, na verdade quase todas estas canções surgiram num bar", riu-se, como quem vai falando a brincar sobre coisas sérias. E não faltam temas "sérios" na música dos MASHROU' LEILA, grupo que tem atravessado fronteiras e cruzado públicos do Oriente e do Ocidente pela abordagem directa - logo, destemida face a muitas realidade árabes - de questões que vão da imigração ao feminismo, da religião ao quotidiano das pessoas LGBTQ no Líbano. Sinno é, de resto, uma dessas pessoas e tem dado voz a uma comunidade nos últimos anos, sem que os seus relatos tenham passado despercebidos: a banda foi banida no Egipto, na Jordânia ou no seu país natal e chegou a separar-se antes de decidir prosseguir, aparentemente mais coesa do que nunca.
Mas se no Médio Oriente se fecharam algumas portas, são cada vez mais os que acolhem o quarteto de braços abertos noutras paragens. A prova mais recente foram os concertos da digressão europeia, The Beirut School Tour, que chegaram a esgotar com meses de antecedência em Amesterdão, Berlim e Bruxelas. E se todos estiveram ao nível deste último, não é difícil perceber porquê. A noite atestou um daqueles casos em que uma banda já interessante em disco sobe (e de que maneira!) de patamar num palco, com uma sintonia rara entre música, palavra, entrega e comunhão com o público.
"The Beirut School", compilação editada em Março que revisita uma discografia iniciada em 2008 e na qual se contam três álbuns e um EP, foi o mote para um espectáculo revelador de uma personalidade já bem identificável, que tanto aceita heranças da tradição libanesa - nos momentos mais acústicos e melódicos, às vezes quase de câmara - como se abre a contaminações pop-rock de perfil alternativo - na faceta electrónica e de maior aceleração rítmica, devedora de alguma música de dança. Não admira, por isso, que Joe Goddard, dos Hot Chip, não só seja um dos fãs do grupo como até tenha produzido os seus temas mais recentes (incluídos na compilação e a reforçarem a presença dos sintetizadores).
Ao vivo, a coexistência do clássico e do moderno resultou ainda melhor, com um embalo vibrante e praticamente imparável ao longo de quase duas horas durante as quais nem foi preciso perceber as palavras cantadas (todas as letras optam pelo árabe) para que o diálogo entre banda e público fosse evidente. Por um lado, porque voz versátil e possante de Sinno chega a ser uma força da natureza, com uma intensidade e melancolia que convivem muito bem com o apelo à dança (ou com belíssimos temas introspectivos na linha de "Kalam") sem nunca resvalar para exibicionismos. Por outro, porque o vocalista provou ser também um óptimo mestre de cerimónias ao apresentar o que esteve na origem da maioria dos temas, sempre munido de um sentido de humor que não escondeu que para chegar a uma festa como esta foram vertidas algumas lágrimas.
Essa inquietação, que resiste até chegar à celebração, vincou um concerto igualmente defendido pelos outros elementos dos MASHROU' LEILA: Carl Gerges na bateria, Firas Abou Fakher nos teclados, programações ou guitarra e Haig Papazian no violino. Este último foi o único a disputar o protagonismo, como quando aderiu a uma aproximação à dança do ventre com o vocalista, num dos episódios mais aplaudidos da noite - ainda assim contido face aos padrões ocidentais mas sensual e queer o suficiente para que o grupo seja ostracizado em alguns palcos muçulmanos.
O que certas vozes apontam como banda provocadora e chocante não apresentou, ao vivo, nenhum gesto que não se veja numa qualquer noite num bar ou discoteca, seja de Bruxelas ou de Lisboa. E os MASHROU' LEILA não parecem ter a pretensão de ser um grupo no limite, com a transgressão gritada e glorificada. Limitam-se a celebrar o direito à diferença e a pedir que a respeitem sem meias-palavras. Felizmente, essa identidade e postura activista surgiu integrada num conjunto de canções memoráveis, que deixaram o espectáculo muito longe de um panfleto.
Sem um aparato visual excessivo, a actuação levou a palco, entre outras, as imagens de muitos videoclips do grupo, parte deles icónicos junto de uma imensa minoria e que tendem a esbater conceitos de masculino e feminino. Uma forma de colocar em jogo as ligações entre género e nacionalidade, como sublinhou Sinno, e o papel variável que culturas diferentes atribuem ao homem e à mulher. "Não temos mulheres na banda, por isso não nos sentimos com a maior autoridade para discutir questões feministas. Mas mesmo assim não deixamos de as trazer para a nossa música", assinalou. "Roman" foi dos casos mais expressivos dessa vertente, numa ode à mulher árabe que, como o videoclip acentua, não limita a figura feminina a um lugar pré-definido.
A atitude engajada não comprometeu o hedonismo, até porque o apelo físico das canções saiu reforçado ao vivo. A vitamina pop de "Falyakon", com acordes de guitarra irresistíveis, e a electrónica hipnótica de "Radio Romance" estiveram entre os melhores exemplos. Ou a mais épica "Salaam", canção criada a meias com Róisín Murphy, "uma das pessoas incríveis que a nossa música permitiu conhecer", contou o vocalista.
"Encontros como esse fazem com que nos sintamos privilegiados e orgulhosos de não termos desistido", confessou. Outra colaboração marcante no percurso do MASHROU' LEILA juntou-os a Andy Butler, numa das canções dos Hercules & Love Affair - "uma referência nos meus primeiros anos da idade adulta, decisiva para a minha música e vida pessoal", revelou Sinno. Como outros temas da noite, a dança melancólica de "Are You Still Certain" também saiu a ganhar face à versão do álbum, cortesia de uma faceta mais musculada e acelerada.
"Maghawir" foi outro excelente cruzamento electroacústico, com um crescendo de intensidade a terminar com um acesso instrumental de cordas e sintetizadores, a deixar a maior descarga de BPM do espectáculo - e com um público a aderir ao frenesim do grupo. "Djin", já um hino na versão gravada, conseguiu um efeito ainda mais galvanizador, num despique entre Sinno e os fãs, desafiados a gritar os coros do refrão tão alto quanto pudessem. Um contraste com "Marrikh", lamento que encerrou a noite num encore sem luzes no palco, a pedido do vocalista, e que suscitou uma constelação de telemóveis para iluminar a despedida - na qual a voz pareceu brilhar mais do que nunca, na derradeira prova de um cantor de excepção e de uma banda à altura.
Só é pena que Portugal ainda não tenha tido direito a um concerto dos MASHROU' LEILA, sobretudo quando se ajustaria tão bem a uma sala como a um festival, tanto de rock como de músicas do mundo. Em todo o caso, uma experiência destas mais do que justifica a viagem - e regressa-se com a sensação de ter visto um dos grandes concertos do ano, venha o que vier a seguir...
5/5