Ver Veneza e vencer (com um filme português que merece atenção)
É provavelmente o filme português mais celebrado do ano, está a caminho de ser tornar o mais visto e o entusiasmo justifica-se: "LISTEN", de Ana Rocha de Sousa, tem uma mensagem urgente mas que não ofusca o olhar de uma cineasta promissora.
Multipremiado na mais recente edição do Festival de Veneza e um fenómeno de bilheteira por cá, mesmo em tempos de pandemia, "LISTEN" é um filme que marca o ano como poucos. E merece ser descoberto não só pela sensibilidade com que aborda questões controversas - a adopção forçada dos filhos de um casal de emigrantes portugueses em Inglaterra -, mas também pela forma como traz para o cinema nacional heranças do realismo britânico. Essa filiação não será estranha, tendo em conta a passagem de Ana Rocha de Sousa pela London Film School, e um dos elementos que mais se destacam nesta primeira longa-metragem é a crueza dos ambientes (o que não é sinónimo de frieza emocional) e a economia narrativa, rara numa estreia (a duração vai pouco além dos 70 minutos).
Ao relatar de forma tão despojada e engajada o quotidiano de uma família num momento crítico, olhando de frente para as desigualdades sociais e as injustiças de um sistema que não protege os mais vulneráveis, "LISTEN" não anda longe de territórios do britânico Ken Loach ou dos belgas irmãos Dardenne, limando a componente panfletária de algumas obras do primeiro e aproximando-se da ambiguidade dos segundos.
Mas embora essas comparações tenham sido habituais, Ana Rocha de Sousa aponta antes o cinema do japonês Hirokazu Koreeda ou da libanesa Nadine Labaki como referências, o que talvez ajude a explicar o lirismo de alguns episódios entre a angústia e a exasperação que dominam o filme. É o caso das cenas com Lu, a filha do casal protagonista, uma menina surda cujo olhar comovente diz tudo o que não pode ser expressado por palavras - e a certa altura, nem por gestos, quando apenas a linguagem verbal passa a ser permitida.
Com uma interpretação tão contida como memorável, a pequena Maisie Sly é um dos achados de um elenco coeso, a aliar uma realizadora promissora a uma directora de actores segura. Lúcia Moniz e Ruben Garcia compõem um casal credível e os secundários, sobretudo as personagens dos empregados dos serviços sociais, contribuem para que haja sempre uma faceta humana numa disputa que se poderia tornar facilmente maniqueísta (e aí percebem-se as comparações com Ken Loach, ou pelo menos com "Eu, Daniel Blake", que também recusava demonizar os agentes do sistema).
Partindo de várias situações verídicas de desagregação familiar forçada - e muitas vezes de legitimação questionável, capaz de traumatizar pais e filhos -, Ana Rocha de Sousa deixa um alerta ficcionado num drama escorreito e sem grandes paralelos formais no cinema que se faz por cá (embora esta não seja uma produção 100% portuguesa, antes luso-britânica), estando mais na linha de um retrato justo da precariedade contemporânea como o de "Rosie - Uma Família Sem Teto", do irlandês Paddy Breathnach (também recente mas infelizmente pouco visto).
Ainda assim, às vezes o efeito realista é comprometido por algumas cenas que ameaçam cair no overacting (como as das discussões conjugais), por um ou outro diálogo (caso da videochamada da personagem de Lúcia Moniz com a mãe, demasiado óbvia na denúncia das limitações da Segurança Social britânica) ou pelo modo apressado como o argumento coloca em cena uma aliada do casal protagonista (figura que talvez ganhasse com um olhar mais demorado, tal como a do filho mais velho). Mas são limitações compreensíveis numa primeira longa-metragem que se dirige ao coração do espectador sem subestimar a sua inteligência - e logo por aí deixa vontade de o recomendar e de continuar a seguir o percurso da sua autora.
3/5