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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Viagem ao mundo da droga (legalizada)

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O Brasil de "PICO DA NEBLINA" não difere muito do actual, tirando um elemento que acaba por ter ramificações ao longo da nova série da HBO, estreada no passado domingo: neste 2019 alternativo, a cannabis foi legalizada. E se para alguns essa mudança é um pormenor, para os protagonistas deste drama ambientado em São Paulo faz toda a diferença, ou não dependessem do tráfico de drogas leves como fonte de subsistência, desde os tempos em que ainda era crime.

De "Narcos" a "Ozark" ou "Rainha do Sul", passando pelas italianas "Gomorra" e "Suburra", não têm faltado séries nos últimos tempos onde o narcotráfico está no centro da narrativa. Mas a aposta de Quico Meirelles - que tem o pai, Fernando "Cidade de Deus" Meirelles, na produção e realização de alguns episódios -, parece querer partir dessa realidade para medir o pulso a uma das fases mais conturbadas do Brasil.

O primeiro episódio, pelo menos, propõe um olhar relativamente amplo da sociedade brasileira, deixando logo evidente um interesse pelas diferenças de classes à medida que segue Biriba, um jovem da periferia que vende erva a todo o tipo de clientes (interpretado por um óptimo e empático Luis Navarro). Só que apesar de ser considerado um dos melhores no que faz, pelo cuidado descrito como "artístico" na preparação da sua mercadoria, o protagonista enfrenta um ponto de viragem quando vê o seu negócio legalizado - e com a concorrência a expandir-se, literalmente, de um dia para o outro.

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Qualquer semelhança com a premissa de "Breaking Bad", talvez a série mais icónica a abordar o narcotráfico, não será pura coincidência, tanto que os autores apresentam "O PICO DA NEBLINA" como uma espécie de "Breaking Good", já que desenha um trajecto inverso ao da história protagonizada por Bryan Cranston: Biriba começa por ser alguém que desafia a lei antes de ver a sua actividade legitimada.

Os problemas, no entanto, parecem estar apenas a começar, não só pelos novos desafios laborais mas por uma precariedade monetária que se estende a toda a família do protagonista. E quando o seu melhor amigo e colega se deixa deslumbrar pelo tráfico de drogas duras, parece haver mais ameaças do que oportunidades.

O arranque de "O PICO DA NEBLINA" sai-se muito bem a dar conta das várias dimensões da vida de Biriba, para o qual contribuem um argumento que desenha gente a sério em vez de estereótipos (e há muita gente - e muito diversificada - por aqui) e uma realização desenvolta que começa por ir logo directa ao assunto - veja-se a forma como nos coloca nesta realidade aos primeiros minutos, com um cruzamento hábil de imagens, sem precisar de despejar informação exaustivamente.

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O elenco, em grande parte constituído por actores amadores (a partir de um casting online), ajuda a reforçar o verismo das situações sem que o resultado caia no maniqueísmo de algum realismo social. O humor ajuda, e é servido com espontaneidade num arranque que se esquiva sempre à vitimização (uma personagem até acaba por troçar das simplificações sociológicas de retratos destes ambientes a certa altura).

A apontar algumas reservas, só mesmo em relação aos últimos minutos, com uma mudança de tom demasiado abrupta numa narrativa que se torna apressada, culpa de uma situação climática de que a série talvez não precisasse logo no arranque. O segundo episódio poderá tirar as dúvidas, mas para já esta não deixa de ser uma viagem muito recomendável - e a mostrar um Brasil pouco visto por cá com este nível de realismo e ambiguidade.

O primeiro dos dez episódios de "PICO DA NEBLINA" está disponível na HBO Portugal. Os restantes estreiam na plataforma semanalmente, todas as segundas-feiras.