Viva o luxo
20 anos depois, o álbum de estreia dos GARBAGE tem direito a reedição com lados B e digressão comemorativa. Na passagem por Londres, Shirley Manson mostrou-se tão estonteante como nos dias em que "Stupid Girl" ou "Queer" tomaram meio mundo de assalto.
"Temos tido um percurso com muitos altos e muitos baixos. Enfim, um pouco como a vida de toda a gente... Ou vão dizer-me que a vossa vida tem sido sempre a subir? Vá lá, não me lixem...". Igual a si própria, ou seja, sem meias palavras, Shirley Manson não se cansou de se dirigir aos fãs que esgotaram a segunda noite da banda na O2 Academy, em Brixton, na passada segunda-feira. Um claro ponto alto do percurso recente dos Garbage, que confessaram não actuar em duas datas seguintes na capital inglesa há muito tempo. E um ponto alto ainda maior quando o quarteto (em palco quinteto, com um baixista extra) fez questão de retribuir a adesão de um público heterogéneo como poucos, que não se limitou aos nostálgicos dos anos 90 que uma digressão como "20 Years Queer" poderia sugerir à partida.
"Acompanhei o crescimento de alguns dos que estou a ver na primeira fila. Mas há outros que ainda não tinham nascido quando lançámos o primeiro álbum, certo?", questionou a vocalista perante milhares de espectadores cuja faixa etária iria dos quase 20 aos pouco mais de 50, diversidade que também se reflectiu nos contrastes de estilos por metro quadrado: góticos ao lado de executivos ao lado de hipsters ao lado de metaleiros ao lado de muitas t-shirts de várias eras da banda, talvez o uniforme mais comum. Nada assim tão estranho, no fundo, quando o álbum celebrado nesta digressão, "Garbage" (1995), foi um raríssimo caso de sucesso transversal, da antena da XFM à da Rádio Cidade e rotação habitual na MTV.
Apesar do apelo generalizado, foi também um disco que gerou alguma desconfiança na altura. O flirt de um indie rock pós-grunge com pop e electrónica deixou melómanos preocupados com a autenticidade do novo projecto de Butch Vig (depois de produzir álbuns seminais dos Nirvana ou Smashing Pumpkins), a produção impecável e recheada de camadas e detalhes levantou suspeitas de estar aqui uma mera banda de estúdio, o crossover aventureiro arriscou-se a ficar reduzido a sabor do momento...
20 anos volvidos, as canções falam por si e incluem alguns clássicos da década. E se em disco continuam a soar bem (é uma banda com três produtores, afinal), o que mais surpreende é a frescura que ainda mantêm ao vivo, sobretudo quando conjugadas com a loucura dos quarenta (e nove, mas ninguém diz) de Shirley Manson. Com cabelo rosa em vez do habitual ruivo (a cor da capa do álbum domina, aliás, grande parte da cenografia do espectáculo), mini-saia a remeter para os primeiros tempos dos Garbage e uma segurança em palco talvez mais apurada do que nunca, a vocalista continua a ser uma óptima performer, comunicativa mas com sentido de oportunidade, confiante mas humilde, capaz de encher o palco mas sem ignorar os colegas - com um à vontade a contrastar com a timidez deles, como na altura em que tentou arrancar algumas palavras a Steve Marker ou improvisar uma dança com Duke Erikson.
Mas voltando às canções: o alinhamento de duas horas conjugou, tal como a reedição do álbum, os temas mais emblemáticos com todos os lados B de 1995 e 1996. "Se estiverem à espera de ouvir outra coisa, é melhor saírem já", avisou Manson nos momentos iniciais do concerto, mesmo que viesse a quebrar essa declaração de intenções no final (já lá vamos). A inexistência de uma edição (oficial) dos muitos e bons lados B do grupo (sobretudo os dos dois primeiros álbuns) era uma crítica habitual de muitos fãs e foi parcialmente colmatada, com compensação extra na estreia em palco de alguns deles.
"Subhuman" teve, de resto, honras de arranque da noite, quando a banda estava ainda atrás de um pano branco (às vezes com luz rosa) e só revelava as silhuetas. A esse tema, um dos mais enérgicos, juntaram-se ainda a acelerada "Girl Don't Come", "Sleep" (Shirley em modo lânguido e insinuante), "Driving Lesson" (obsessão ao volante que incluiu um relato da viagem que inspirou a canção), "Butterfly Collector" (versão dos The Jam, com vénia a Paul Weller) e "Kick My Ass" (versão de Vic Chesnutt, com a vocalista a recordar episódios ao lado do músico).
Estas faixas menos conhecidas foram todas bem recebidas, mas dificilmente alguém dirá que ficaram entre os momentos mais memoráveis da noite - incluindo a banda. "Reparei que não estão muito familiarizados com os nossos lados B, as nossas desculpas por isso", notou Manson. "Mas quero destacar este, que é um dos melhores. Não se preocupem que com este estão em boas mãos", realçou ao apresentar "Trip My Wire", que é mesmo da melhor colheita de lados B dos Garbage e poderia ter tido lugar no alinhamento de um álbum - da persona neurótica às variações vocais, passando pelo ritmo infeccioso e remate spoken word, é uma canção que merece ser repescada e teve recepção à altura. Ainda assim, foi alvo concorrência forte noutro lado B, este a alcançar voos mais altos na carreira dos Garbage: o esmagador "#1 Crush", servido numa versão mais densa, talvez em demasia, mas muito bem acompanhada por um dos momentos mais teatrais de Manson, de postura curvada e rastejante, num claro contraste com a pujança de outros episódios.
Além de serem uma boa prenda para os fãs, as raridades permitiram recuperar o fôlego entre a oferta do inequívoco prato principal: as 12 canções de "Garbage", álbum interpretado na íntegra pela primeira vez nesta digressão. "A Stroke of Luck", por exemplo, nunca tinha subido a palco. Balada turva, meio gótica meio trip-hop, mostrou não ter perdido nem o mistério nem o apelo pop, qualidades também presentes num alinhamento de excepção. No mesmo comprimento de onda, o clássico "Milk" foi cantado por uma Shirley Manson cuja atitude evocou o lado forte da letra - ao contrário da postura frágil do videoclip ou da célebre actuação nos MTV EMA 1996, em que a vocalista não disfarçava alguma timidez. Se o instrumental não fugiu muito à versão gravada, o timbre e os tempos da voz evitaram o mero decalque, e foi bom ver Manson fintar esse perfeccionismo ao longo da actuação - fintando também qualquer suspeita de playback, mesmo que ocasional, impondo uma vertente orgânica a canções que devem muito à tecnologia.
Outros singles de um álbum que a espaços se confunde com um best of correram ainda melhor. Não tanto "Queer", trunfo gasto logo ao início, mas sobretudo "Stupid Girl" (a ganhar um bem sacado update electrónico), "Only Happy When It Rains" (um hino geracional, para quem ainda tivesse dúvidas, aqui com arranque a capella) e uma intensíssima "Vow" (certamente das mais gritadas da noite). Embora grande parte do público não conhecesse os lados B de uma ponta à outra, provou ter ouvido "Garbage" muitas vezes: "Not My Idea", "My Lover's Box" e "Fix Me Now" conseguiram uma recepção tão calorosa como os singles, com a primeira a ter um dos refrãos-chave da actuação e a última a crescer muito face à versão gravada.
Se o concerto tivesse sido só isto já teria sido óptimo. Felizmente, a banda fez questão de sabotar a própria lógica da digressão e juntou ao encore dois temas de álbuns posteriores. "Cherry Lips", do mal amado "beautifulgarbage" (2001), fez sentido não só por ser das canções mais orelhudas e descaradamente pop dos Garbage, mas sobretudo por condensar boa parte da postura queer do grupo. "Já defendíamos os direitos da comunidade LGBT muito antes de se tornar moda", salientou Manson. "Bom, e então, o que é que isso tem?", acrescentou, quando se deu conta de que a alusão poderia parecer gratuita e presunçosa.
Mas dificilmente alguém poderá acusá-la de oportunismo quando uma canção como "Queer" surgiu em 1995 e foi apenas a primeira de outras da banda a tocar no assunto, de forma menos escancarada do que algumas estrelas pop mais recentes e mediáticas. Nesse sentido, "Androgyny" ou "Sex Is Not the Enemy" também poderiam ter sido recuperadas para "20 Years Queer", ainda que o grupo tenha optado por "Cherry Lips" por ter sido baseada em dois livros de JT LeRoy, escritor transexual, e servir como alavanca para a discussão "de uma nova batalha". "Há 20 anos, nunca pensaria que a comunidade gay conseguisse tantas vitórias. Éramos olhados de lado por falarmos abertamente disso", recordou. "Mas apesar desses avanços, as pessoas trans ainda são praticamente excluídas nos EUA, por exemplo. E sempre me identifiquei muito com transexuais porque, embora fosse rapariga, às vezes sentia-me como um rapaz. Para mim o género e orientação sexual não são algo estanque, tem tudo imensas variações e não há nada de errado nisso", assinalou, numa das declarações mais longas e emotivas da noite.
Depois da comoção, a celebração, com uma "Cherry Lips" luminosa cujo efeito tomou conta até dos espectadores mais recatados. "Go, baby, go, go"?. Não, Manson os seus rapazes ainda ficaram para mais uma, ultrapassado o catálogo de 1995-1996. E foi mesmo uma canção de 1998 a fechar a noite: "Push It", que não estava no programa mas caiu nos braços do público e soou tão urgente e flamejante como na altura. Fechados os festejos dos 20 anos de "Garbage" (a digressão já passou pelos EUA e despede-se da Europa esta semana) e com novo álbum a caminho (deverá chegar no primeiro semestre do próximo ano, também com apresentações ao vivo), terão os Garbage reservado 2018 para voltar a "Version 2.0", talvez a sua obra-prima? "Push it, make the beats go harder", Shirley...
4,5/5