Volta ao mundo em três dias
Noite esgotada, castelo repleto, África escolhida como protagonista. O FESTIVAL MÚSICAS DO MUNDO (FMM) despediu-se de Sines no sábado depois de ter arrancado em Porto Covo, na semana anterior, e fechou em alta com uma dupla pai e filho. Mas houve outros concertos para recordar...
Quando a oferta é muita... a curiosidade é atiçada? Tem sido assim em Sines nos verões dos últimos 17 anos e a edição mais recente do FMM voltou a ser ocasião para reencontros e descobertas, romarias de avós e netos (juntos ou em separado), concertos gratuitos e pagos (alguns agendados, outros improvisados em qualquer esquina sem serem encarados como parentes pobres).
Quem, como eu, só conseguiu passar por lá nos últimos três dias ainda teve exemplos suficientes da diversidade do cartaz, que tenta encaixar cinco continentes nos poucos metros entre o castelo e a praia (e, ao contrário da maioria da oferta da estação, não dá primazia à facção anglo-saxónica).
Bruno Pernadas mostrou o lado mais exótico da prata da casa, com harmonias vocais e um combo instrumental a servirem de brisa de final de tarde. Chegados do outro lado do mundo, os chineses Shanren extremaram os contrastes num caldeirão com raízes locais e condimentos entre o rock, o reggae e até o metal, conjugados com simpatia e humor. Menos surpreendente, Alo Wala, norte-americana de ascendência indiana, serviu música de dança mestiça contaminada por hip-hop ou dancehall demasiado encostada a M.I.A. (a imagem reforça a comparação), mas capaz de instalar a festa sem dificuldades na última noite, em modo discoteca ao ar livre - o jogo de luz e cor ajudou, tal como a explosiva "In a Minute", faixa em que colaborou com os Buraka Som Sistema. E se não terão faltado outros concertos a deixar marca (houvesse tempo para espreitar todos), as melhores recordações ficaram por conta dos três abaixo:
TOUMANI & SIDIKI DIABATÉ no Castelo - sábado, 25 de Julho
Pai e filho, o espiritual e o espirituoso, dois músicos que valeram por pelo menos seis. Porque como explicou Toumani, a kora, tocada por ambos, equivale a três instrumentos (e a sua música nasce da conjugação entre baixo, melodia e improviso). A "missão de vida" destes malianos, realçou também o pai, era "mostrar a beleza de África" e será seguro dizer que foi cumprida sem contrariedades.
Actuais representantes de uma tradição com mais de 700 anos, nascida da peculiar harpa de 21 cordas, Toumani e Sidiki são também dois dos nomes centrais da música do Mali - o pai, veterano respeitado, já colaborou com Björk, Damon Albarn ou Ali Farka Touré; o filho é uma estrela hip-hop em ascensão que não descura a herança cultural familiar. A Sines trouxeram as canções do álbum "Toumani & Sidiki" (2014), o único editado em conjunto até agora, já apresentado em Fevereiro na Culturgest, em Lisboa. Para quem ainda não o conhecia, terá ficado como uma das maiores revelações desta edição do FMM, até porque as actuações que fecharam a última noite no castelo, a cargo de Salif Keita e Orlando Julius & The Heliocentrics, limitaram-se a muito profissionalismo com pouco rasgo.
Sem tanta pompa, a dispensar o formato a caminho da big band, a dupla Diabaté mostrou que menos pode ser mais ao enlear milhares em instrumentais cristalinos, cujo aparente minimalismo esconde camadas atravessadas por sugestões de melancolia a esperança. A introspecção nem sempre se deu bem com uma multidão em horário nobre - quanto mais longe do palco, mais incomodativo era algum burburinho do público -, mas nem isso abalou a experiência por aí além.
Pelo meio houve espaço para um mini-workshop de kora, oferecido por Toumani, o mais comunicativo do duo - também foi ele que apelou, no fim, a que os dirigentes políticos valorizassem mais o plano humano do que o económico, pedido complementado por "Lampedusa", tema de homenagem a migrantes ilegais desaparecidos no mar. Aparentemente mais despreocupado, Sidiki equilibrou a seriedade e comoção do pai com um à vontade inabalável, quase sempre traduzido em gestos e olhares. Da óbvia química entre os dois nasceu um concerto a provar que a beleza de África passa mesmo por aqui - e é bom ouvir alternativas aos surtos de kizomba duvidoso de tantas outras paragens. Para ouvir: "Dr. Cheikh Modibo"
IVA NOVA na Avenida da Praia - sexta, 24 de Julho
A primavera russa começa em Sines? Foi o que pareceu ao ver esta girl band que de girly pouco teve. The Organ meets Yann Tiersen é só um eventual princípio de canções mutantes com atitude à altura e adesão imediata - a folia dos Gogol Bordello entrecruzada pela electrónica e dicção de Mãozinha (lembram-se?) poderia ser outra entrada possível. Mesmo assim seriam só aproximações à singular "technofolk" (a classificação é da vocalista) deste quarteto de São Petersburgo. Aliar (ou confrontar) tradição e modernidade não é novidade, em alguns casos até é aposta arriscada - sobretudo quando a modernidade resulta em música "modernaça" -, mas as Iva Nova parecem uma aposta confiável, pelo menos ao vivo.
A apresentação do quarto álbum, editado no ano passado, motivou a estreia em Portugal e deixou a vontade de conhecer também os anteriores. Não terão, claro, o bónus de permitir testemunhar o gozo e entrega de uma banda decidida a aproveitar cada momento junto de um público que cresceu em número e entusiasmo. Da postura rock n' roll da baixista e da baterista ao lado mais circense da acordeonista e da vocalista, não faltou desenvoltura nem episódios a guardar.
"Hoje é o dia da emancipação feminina", comentava alguém enquanto o grupo fazia a ponte entre a tarde e a noite à beira-mar. Mas para as Iva Nova esse grito já parece ter chegado em 2002, quando se juntaram para levar a palco histórias tristes de noivas búlgaras (um dos idiomas das canções, ao lado do georgiano, ucraniano e, claro, russo) que terminam em ambiente de festa na aldeia patrocinada por Goran Bregovic. E que bonita foi, à imagem da banda. Para ver e ouvir: "Spring" (ao vivo)
IDIOTAPE na Avenida da Praia - quinta, 23 de Julho
Antes destes três coreanos subirem a palco, foram apresentados como uma banda inspirada pelo rock conterrâneo clássico dos anos 60 e 70 - descrição confirmada pelo site do festival. Mas não é preciso conhecer muito o rock coreano clássico para desconfiar que a música dos Daft Punk, Digitalism, Vitalic ou Justice terá sido tão ou mais influente (com ênfase no mais).
Resposta sul-coreana ao french touch? É tentador dizer que sim, e se chega com atraso não deixa de ser eficaz naquilo a que se compromete. Para o horário das quatro da manhã, este ataque sónico de house e electro maximal cumpriu perfeitamente, pelo menos para quem já sabia no que se ia meter: entre batidas robustas, ritmos acelerados, crescendos desenfreados mas geridos por quem tem a lição bem estudada.
A electrónica é dominante, mas o rock também acaba por passar por aqui, apesar de este power trio só manter a bateria da formação instrumental clássica (em palco, porque o baixo e a guitarra também se ouvem, embora sintetizados). A presença dos músicos não passou despercebida e nem foram precisas palavras para a energia dos três incitar reacções do público - compare-se com as estrelas DJs da geração EDM e vejam-se as diferenças. Também é verdade que esse poderio, a amplificar a vertente live, não chegou para evitar um alinhamento a rodar em seco na recta final, vítima de alguma rigidez rítmica. Mas a atenção foi devidamente resgatada na despedida, com um trunfo muito bem jogado: "Sabotage", dos Beastie Boys, disparada com embrulho electrónico. Depois de Seul e Paris, Nova Iorque dos anos 90 ajudou a fazer a noite. Não admira que o novo disco se chame "Tours"... Para ouvir: "Melodie"
Fotos @Facebook do Festival Músicas do Mundo